Papai Noel existe!

the-sun

Editorial do The Sun, 1897
É com enorme prazer que respondemos à carta abaixo, aproveitando para expressar nossa enorme gratidão em reconhecer sua autora como fiel amiga doThe Sun.
Prezado Editor : Tenho 8 anos, alguns dos meus amiguinhos dizem que não existe Papai Noel. Meu pai costuma falar: “Se estiver no The Sun, então será verdade.” Por favor, me diga a verdade, Papai Noel existe?
Virgínia O’Hanlon
Virgínia, seus amiguinhos estão errados.
Provavelmente foram afetados pela descrença de uma época em que as pessoas acreditam em poucas coisas. Só acreditam naquilo que veem. Eles acham que o que não compreendem com suas cabecinhas não pode existir.
Todas as mentes, Virgínia, sejam dos adultos ou as das crianças, são limitadas.
Nesse nosso grande universo, o homem é um mero inseto, uma formiguinha, quando seu intelecto é comparado com o infinito que o cerca ou quando medido pela inteligência capaz de entender toda a verdade e conhecimento.
Sim, Virgínia, Papai Noel existe.
Isso é tão certo quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção, e você sabe que tudo isso existe em abundância trazendo mais beleza e alegria à nossa vida.
Ah! como seria triste o mundo sem Papai Noel!
Seria tão triste quanto não existir Virgínias. Não haveria então a fé das crianças, a poesia e a fantasia para fazer a nossa existência suportável.
Não teríamos alegria nem prazer a não ser com os nossos sentidos: seria preciso ver e tocar para poder sonhar.
A transparente luz das crianças, com a qual inundam o mundo, seria apagada.
Não acreditar em Papai Noel!… É o mesmo que não acreditar em fadas!
Você poderá pedir ao seu pai para contratar muitos homens para vigiar todas as chaminés na véspera de Natal e assim pegar Papai Noel; mas, mesmo que você não o visse descendo por elas, o que isso provaria?
Ninguém vê Papai Noel, mas não há sinais de que ele não existe.
Você por acaso já viu fadas dançando no jardim?
Claro que não, mas não há provas de que elas não estejam por lá.
Ninguém pode conceber ou imaginar todas as maravilhas do mundo que nunca foram vistas e que nunca poderão ser admiradas.
As coisas mais reais do mundo são aquelas que nem as crianças nem os adultos podem ver. Se quebrarmos o chocalho de um bebezinho, poderemos ver o que faz aquele barulho lá dentro, mas existe um véu cobrindo o mundo invisível, que nem o homem mais forte, nem mesmo toda a força de todos os homens mais fortes do mundo reunida poderia rasgar.
Somente a fé, a poesia, o amor e a fantasia podem abrir essa cortina e desvendar a beleza e a glória celestiais que existem por trás dela.
Será que tudo isso é real?
Ah, Virgínia, em todo este mundo não existe nada mais real e duradouro.
Se Papai Noel existe?
Graças a Deus ele vive e viverá para sempre.
Daqui a mil anos, Virgínia, e ainda daqui a dez mil anos ou dez vezes esse número ele continuará a fazer feliz o coração das crianças.

A questão ciência x fé

(Urano)  (Reprodução)

Ciência e fé: realidades paralelas

O que irrita os cientistas, ao menos os que são ateus, é a insistência dos que têm fé em crer em algo inacessível

No perene debate entre a ciência e a religião, algo que costuma irritar os cientistas, ao menos aqueles que se consideram ateus, é a insistência dos que têm fé em acreditar numa realidade paralela, inacessível à razão. Vejamos isso num diálogo fictício entre um cientista ateu e uma pessoa de fé bem versada nos avanços da ciência.

Cientista: “Uma causa sobrenatural não faz sentido: se for sobrenatural, isto é, além dos limites do espaço e do tempo, das leis da natureza, do material, como podemos saber da sua existência?

Afinal, o que existe tem de ser detectado. Caso contrário, essa existência é uma fabricação, uma fantasia. Pior ainda, se essa causa se manifestar naturalmente, através de uma ‘visão’ ou de um fenômeno qualquer, vira uma causa natural, que pode ser estudada pelos métodos da ciência. Ou seja, se algum deus existe, é impossível saber da sua existência de forma concreta. E não existe outra forma de saber”.

Pessoa de fé: “A coisa não é assim tão simples, preto ou branco, existe ou não existe.

Entendo que, dentro do método científico, algo precisa ser detectável para que se comprove que é real. Ninguém sabia da existência de Urano até sua detecção por William Herschel em 1781. Mas, antes da detecção, Urano existia ou não? Claro que sim, mesmo que não soubéssemos disso. A ciência não pode determinar com firmeza o que não existe, apenas o que existe”.

Cientista: “Mas você não pode, não deveria, comparar Deus a um objeto celeste. Pelo que entendo, Sua existência não passa pelas leis da natureza. Se passasse, Deus seria um fenômeno natural e deixaria de ter essa transcendência de que vocês tanto gostam e que ajuda a crença. Se Deus se ‘esconde’ numa realidade paralela, jamais fará parte do cânone da ciência”.

Pessoa de fé: “Sem dúvida, Deus jamais fará parte do cânone da ciência. Esse é o seu problema, tudo tem de ser parte desse cânone. E eu já não penso assim.

Existem coisas que estão além da ciência, coisas que a ciência não tem como e nem deveria tentar explicar. A ciência tem um método bastante claro de estudo, separando o objeto a ser estudado do todo. Esse método supõe que a separação pode ser feita. Isso funciona muito bem no laboratório, ou quando um astrônomo observa uma galáxia.

Mas como explicar, por exemplo, o Universo como um todo, a questão da origem de tudo? Como olhar para o Universo como um objeto de estudo, se não podemos sair dele?”.

Cientista: “Esse é o problema mais complicado, que os filósofos gostam de chamar de Primeira Causa, e os físicos, de ‘condições iniciais’. Verdade, temos sempre de supor um contexto para oferecer uma explicação. Não temos ainda uma lei que explique como selecionar uma condição inicial dentre as várias possíveis. Mas nem por isso devemos supor que a explicação é sobrenatural, obra de uma entidade que não podemos saber se existe. Que tipo de explicação é essa?”.

Pessoa de fé: “Essa é a explicação pela fé, além da ciência”.

Cientista: “Eu prefiro continuar tentando entender do meu jeito”.

Pessoa de fé: “Boa sorte, que Deus te inspire”.

Cientista: “Eu prefiro me inspirar sozinho mesmo”.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de “Criação Imperfeita”

(Folha de S.Paulo, Ciência, 7/10/2012)

Filosofia, Religião e Ciência

Os conceitos da vida e do mundo que chamamos “filosóficos” são produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar “científica”, empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.

“Filosofia” é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento definido – eu o afirmaria – pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito? Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura Tais questões não encontram resposta no laboratório. As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com suspeita. O estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses problemas, constitui o empenho da filosofia.

Mas por que, então, – poderíeis perguntar – perder tempo com problemas tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador, tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas seguintes.

Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas, Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis. Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar àqueles que a estudam.

A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250). Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do que a Igreja.

A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a restrições impostas pelo Estado. O pensamento grego, até Aristóteles, é dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político. Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social, durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, foi assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força – primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos, primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.

Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.

O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o seu dever para com o Estado.(1) A opinião de que “devemos obedecer mais a Deus que ao homem”, como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino, permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou do Cristianismo de Constantinopla.(2) Mas no Ocidente, onde os imperadores católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda hoje.

A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu, em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em 1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano de Justiniano.

Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália, França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI ), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental, formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano 1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi, também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o que havia de mais civilizado no presente.

O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou rapto. É possível que os monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos, submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.

Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última consideração foi decisiva.

A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém – principalmente entre os frades franciscanos – havia alguns que, por várias razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.

Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. No período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos fatos recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico expoente da época.

Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada, em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares. Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de sentir dos homens, como jamais exercera antes – influência essa que, progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade da civilização.

Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral, tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas – de coesão social.

Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha, se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.

Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela Reforma. A Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade. Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na maior parte da Europa Setentrional.

A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica; sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente, romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes à Igreja – mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.

Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia, no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando, depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez social.

A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum cotidiano.

Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo, dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados, após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a origem do “quakerismo”. Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.

A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à “sensibilidade” começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.

O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores. Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente agradáveis.

Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão contrário ao “entusiasmo” – o individualismo dos anabatistas como à autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e que resulta a adoração do Estado.

Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando, portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente, que a felicidade não constitui o bem, mas que a “nobreza” ou o “heroísmo” devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.

É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que persiste durante longo tempo – tem a sua parte de razão e a sua parte de equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado, a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos, vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida, somente o futuro poderá demonstrá-lo.

Notas
1
. Essa opinião não era desconhecida em tempos anteriores: foi exposta, por exemplo, na Antígona, de Sófocles. Mas, antes dos estóicos, eram poucos os que a mantinham.
2. Eis aí porque o russo moderno não acha que deva obedecer mais ao materialismo dialético do que a Stalin.

In Russell, B. (1977): História da Filosofia Ocidental, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional.

http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/russell.htm

Congelamento de corpos

NO CONGELAMENTO DOS CORPOS, A ILUSÃO

Sempre que volto à Colônia onde moro procuro olhar ao meu redor para sentir a beleza da natureza e, feliz, busco a companhia das flores e dos pássaros. Olhando tudo sinto o quanto Deus é bom.

A maioria dos encarnados, por julgar que a morte é o fim da estrada, não se preocupa em agir corretamente e se auto-destrói. E a vida é contínua, um rio de oportunidades cujas águas um dia chegarão a Deus. Até lá, temos por obrigação nos tornarmos puros. Muitos, vivendo somente o hoje por julgarem que no amanhã só existe o nada, não preparam uma bagagem digna. Quando chega a “morte”, o espírito, completamente perturbado, se sente muito infeliz, não se conforma com a realidade do mundo espiritual e só pensa em viver junto aos encarnados, não percebendo o mal que faz a si próprio. Nisso Joana aproximou-se de mim:

— Sérgio, por que a preocupação?

– Encontrava-me somente pensando como pode um homem não aceitar a imortalidade da alma. Quem assim pensa não crê em Deus, apenas recita o Seu nome em vão.

Se Deus destruísse as Suas obras Ele não seria perfeito, portanto, não possuiria bondade. E quantos que se dizem crentes nas Suas palavras esperam a hora do descanso eterno.

— Mas é difícil, Sérgio, para muitos, buscar as verdades do mundo espiritual, principalmente os que no corpo físico só pensaram em se divertir. Não é fácil para o orgulhoso imaginar que depois da morte terá de viver ao lado dos pobres que desprezou e muitas vezes labutar por uma ocupação, quase sempre bem longe daquela que gostaria de exercer. Esta semana fomos socorrer um irmão que quando encarnado foi reverenciado pelo equilíbrio e pela inteligência. O seu espírito, ao constatar que se desprendia da matéria, procurava ao seu redor a razão de se manter ainda vivo.

Apesar de ter lido alguns livros sobre a morte, ele a tudo examinava e, ao perceber que do lado espiritual os equipamentos médicos eram quase iguais aos do mundo físico, curioso ficou em conhecer o outro lado da vida. Quando seus familiares vieram dar-lhe as boas-vindas, ele, chorando muito, disse ao pai:

— Por que não se aprende sobre a morte nas salas de aula? Evitaria que o homem errasse tanto. Foram poucos os anos vividos na terra e não sei se os vivi dignamente.

— Meu filho, agora somente sua consciência responderá. Espero que ela não se torne juiz por demais severo.

Aquele espírito, mesmo sendo levado na maca, tinha no olhar a indagação e nos gestos as atitudes de um homem público. Depois de socorrido, pouco tínhamos para fazer ali. Os familiares já esperavam o desencarne, portanto, podíamos retirar-nos, e quando o fazíamos vimos aproximar-se do recém-desencarnado o espírito de uma mulher que ainda tinha a aparência de preta velha.

O nosso amigo, ao reconhecê-la, chorou muito, abraçado a ela, que carinhosamente o amparou nos braços. Era o reencontro num mundo onde todos somos socialmente iguais, só havendo a separação por vibração magnética.

Não é Deus quem nos manda para o “inferno” ou o “purgatório”, mas a nossa consciência, que nos coloca no lugar apropriado às nossas lembranças. Um homem sem caráter não pode ficar ao lado de um que viveu na justiça. Um caridoso não pode viver com alguém que só amou a usura. O famoso irmão foi socorrido, mas não podemos assegurar onde será a sua morada, pois não sabemos o que ele tem depositado no banco da providência divina. Se ele deve muito, terá de trabalhar primeiro em tarefas bem simples para aprender a conviver com a humildade. Mas também pode o irmão ter uma boa cota de belas ações, que o colocará ao lado dos trabalhadores deste País tão amado, junto aos espíritos encarregados de fazer brilhar a estrela de Jesus na pátria brasileira.

Joana foi-se retirando e eu, que não tinha assistido a este socorro, senti-me gratificado pela visita da minha querida irmã. Assim, nós dois, conversando e apreciando a natureza, que é velada por Deus, fomos ao encontro de Deleuze, Edouard e Patrice.

“Muitos dos lírios colhidos na terra trazem ainda nos pés o lodo da imperfeição”. Pensando isso, dirigimo-nos a um hospital da espiritualidade, onde vários recém-desencarnados estavam sendo tratados.

O hospital, em formato redondo, era circundado por palmeiras. Muitos olhos d’água enfeitavam o jardim, onde a cor azul predominava, apesar do prédio ser pintado de branco.

Até as hortências, cravos e rosas me pareciam azulados.

Na portaria, fomos recebidos por Sillos, que conversou muito com Deleuze. A sala de espera apresentava em suas paredes vários quadros de pessoas que nunca vi, verdadeiras obras de arte. Dada a permissão, entramos em um pátio redondo onde uma fonte de águas claras e coloridas borrifava os doentes que ali se encontravam na grama ou nos bancos. Já me impacientava, por não saber o motivo pelo qual ali nos encontrávamos, quando avistamos a doutora Matilde. Muito gentil, convidou-nos para uma visita às enfermarias do Hospital de Lucas.

Eram poucas as camas na enfermaria número um, e nelas dormiam espíritos que davam a aparência de mumificados. Aproximamo-nos. Através da doutora Matilde e outro médico ali encontrado – o doutor Sabá – ficamos sabendo que aqueles irmãos tinham os corpos congelados na terra.

Julgavam-se mortos, apesar do tratamento que vinham recebendo. A cama me pareceu aquecida por várias lâmpadas: ora acendia a azul, ora outro tom de azul, depois a cor-de-rosa, em seguida voltava a azul. Logo após uma lâmpada amarela acendeu no centro cardíaco. Finalmente, voltou a azul. Os espíritos em sono profundo, pareciam “mortos”, porque ignoravam qualquer presença. Passamos pelas camas e observamos todos a dormir um bom sono, Joana comentou:

— Até que deve ser bom a gente desencarnar assim, não é mesmo?

— Eu é que não queria esse desencarne, perda de tempo, e depois, acredito que esses espíritos devem estar sentindo um frio louco. E se fosse na terra e faltasse luz? brinquei.

Edouard, que estava perto de nós dois, sorriu, dizendo:

— Talvez assim voltassem à realidade.

— Eles desencarnaram na Sibéria?

~ Não, congelaram seus corpos para a volta do espírito.

— É mesmo? Coitados, esperam com isso driblar a morte?

— Mais ou menos.

— E os que tomavam sol no jardim?

— São os convalescentes, logo estarão trabalhando.

— Mas dizem que existem muitos que nem desencarnaram ainda. E como se encontram aqui?

— Não sabemos disso. Os que socorremos já desencarnaram. Mas tinham tanta certeza de que não iriam desencarnar que até hoje se julgam congelados.

— Gente tem cada mania…

— Existem propagandas para o congelamento.

— É, o freezer está fazendo sucesso. Não só perus, porcos e galinhas, mas os corpos humanos também estão sendo nele guardados. Sabe, Deleuze, eu senti imensa vontade de tocar naqueles corpos, mas ao me aproximar de um deles senti tanto frio!

Deleuze sorriu, dizendo-me:

— Por isso eles estão no Hospital de Lucas, se não fossem socorridos sofreriam muito mais.

— Gostaria de voltar ao jardim.

— Vamos, lá recuperaremos as energias que dispersamos aqui, junto a esses irmãos.

Ao retornarmos ao jardim, procurei reconhecer alguns dos convalescentes, mas a brisa, o perfume, o sol, o orvalho, tudo era tão digno que a curiosidade se dissipou e eu apenas baixei a cabeça, orando a Deus:

Senhor, eu não sou digno de entrar em Sua casa, mas faça com que meu espírito seja salvo junto àqueles que se distanciaram do Seu coração. Assim seja.

(Irene Pacheco Machado, médium, Luiz Sérgio, Espírito. “Lírios Colhidos”, Brasília: Ed. Recanto, 2006, 10ª ed., cap. XVI, pp. 99-103)

 
 
 

O ensino da espiritualidade

Você cuida da espiritualidade do seu filho?

Como essa palavra “acontece” na sua casa? Para praticar é preciso pertencer a alguma religião? Decidimos discutir o termo e o tema com pessoas bem diferentes e o resultado é surpreendente: praticar espiritualidade pode ser mais simples do que você imagina

Cristiane Rogerio e Simone Tinti

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Reparar que o vaso de flor está cheio de brotinhos novos. Sorrir cada vez que seu filho disser “por favor” ou “obrigado” (principalmente se for para outra pessoa, quem sabe até um desconhecido). Parar para assistir a um pôr do sol em plena segunda-feira. Dar um copo de água com açúcar para um amigo que precisa se acalmar. Preparar um café da tarde bem gostoso, com direito ao bolo preferido do seu filho. Registrar um sorriso de seu bebê numa fotografia para poder grudá-la bem em frente à sua mesa de trabalho. Ouvir o canto do sabiá em meio ao barulho dos carros em um trânsito caótico. Esta pode parecer apenas uma lista simples de possibilidades do cotidiano. Mas, se você está aí suspirando ao imaginar cada uma delas, é porque aqui tem algo especial: exemplos de como a espiritualidade acontece no seu dia a dia, muitas vezes sem você perceber. E espiritualidade não está ligada à religião? Sim, está. Mas não é somente o fato de seguir alguma crença que define se uma pessoa é espiritualizada. É muito mais.

Sim, faz sentido 

Quando pedimos ao professor e filósofo Mario Sergio Cortella uma definição de espiritualidade, ele nos surpreendeu. “É tudo aquilo que torna a vida engraçada”, disse. E explica: o termo “engraçado” está associado ao “render graças” e, por isso, espiritualidade é o que enche a vida de graça. Ou seja: pode ser alguém que faz você gargalhar, pode ser a deliciosa sensação de um mergulho no mar. O que fizer você feliz.

Padre Claudio Gregianin, vigário da Igreja Coração de Maria, em Higienópolis (SP), tem outra explicação para o termo: uma espécie de “oxigênio da alma”. “Existe uma palavra judaica – ruâh –, vista no Antigo Testamento, que significa ‘vento’, ‘sopro’, e que também é a referência para ‘espírito’, o ‘não material’. E, segundo o conceito de fé judaico-cristã, é esse sopro que movimenta o nosso pensamento, o nosso coração e o nosso comportamento.” Nos últimos dez anos o termo espiritualidade se dissociou da palavra religiosidade, e agora não está mais obrigatoriamente ligado à religião.

Praticar espiritualidade é…

”Eu sempre alimento os sonhos dos meus filhos. Acredito que permitir que eles encontrem o seu próprio caminho, se descubram, também é uma maneira de exercer a espiritualidade.”

Patrícia Otero, coordenadora da ONG 5 elementos e mãe de Luiz Otero Miller, de 11 anos, e Pedro Otero Miller, de 13 anos

Revista Crescer,http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI107597-10448,00-ESPIRITUALIDADE.html