Melhoramento moral e as paixões humanas

As paixões: Uma breve análise filosófica e espírita
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(Eugène Delacroix (1798-1863), “A barca de Dante” (1822))(Reprodução)

Silvio Seno Chibeni

Resumo:

Neste trabalho desenvolve-se um estudo das paixões da alma com base na seção intitulada “Paixões” do capítulo “Da perfeição moral” de O Livro dos Espíritos, bem como em tópicos da obra de René DescartesAs Paixões da Alma.

1. Introdução

Abrindo a seção sobre as paixões de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec pergunta: [2]

907. Será intrinsecamente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na Natureza?

Antes de analisarmos a resposta dos Espíritos, detenhamo-nos um pouco sobre a própria questão.

O primeiro ponto a ser notado é que Kardec indaga acerca do princípio originário das paixões, e não delas próprias, ou seja, procura esclarecimento sobre a origem, a fonte de onde promanam as paixões.

A segunda observação importante é que há, na pergunta, uma afirmação categórica: esse princípio do qual provêm as paixões está na Natureza, isto é, faz parte da ordem natural das coisas.

Ora, o conceito ordinário de paixão, adotado pelo homem comum, traz consigo uma conotação negativa evidente: associa-se paixão a desequilíbrio, tumulto emocional ou desvios patológicos do sentimento, sendo mesmo freqüente ouvir-se frases como ‘Isto não é amor, é paixão’, ou ‘Fulano está cego de paixão’.

A questão proposta por Kardec motiva-se exatamente pelo conflito entre essa acepção vulgar do termo ‘paixão’ e a análise filosófica das paixões (de que trataremos na seção seguinte), que indica serem elas provenientes de causas naturais. Considerando que tudo aquilo que pertence à ordem natural obedece a uma sabedoria e a uma bondade supremas, tendo, em outras palavras, sido instituído por Deus, como poderia essa fonte sábia e boa levar, em última instância, a sentimentos intrinsecamente maus?

Vejamos o que respondem os Espíritos:

“Não, a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.”

A resposta corrobora, portanto, aquilo que está implícito na afirmação de Kardec: o princípio originário das paixões é bom, tendo sido “posto no homem para o bem”. O mal que vulgarmente se associa às paixões é o resultado de uma distorção do sentimento original. Do contexto é justo depreender que essa distorção corre por conta do livre arbítrio humano na condução de seus sentimentos, não podendo ser imputada à fonte natural e neutra de onde provêm.

Na questão seguinte, de número 908, Kardec indaga como se pode “determinar o limite onde as paixões deixam de ser boas para se tornarem más”, obtendo esta resposta:

“As paixões são como um corcel, que só tem utilidade quando governado e que se torna perigoso desde que passe a governar. Uma paixão se torna perigosa a partir do momento em que deixais de poder governá-la e que dá em resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos, ou para outrem.”

Vemos, pois, que o limite natural das paixões se estabelece com base em dois critérios: 1) a capacidade de seu controle; e, 2) os males que possam causar a terceiros ou àquele próprio que as vivencia.

2. A natureza das paixões

Inegavelmente, dada a ordinária carga negativa associada ao conceito de paixão, a afirmativa de Kardec e dos Espíritos de que a fonte original das paixões é boa tende a causar estranheza na maioria das pessoas. Por tal motivo julgamos importante fazer uma incursão, ainda que breve e simplificada, nos domínios da filosofia, que tem as paixões como um de seus temas mais discutidos. Os fundamentos dessa afirmativa serão, desse modo, elucidados.

Como ocorre com boa parte dos vocábulos das línguas naturais, a palavra ‘paixão’ comporta diversos significados. Na acepção popular em nossos dias, ela designa certos sentimentos fortes, exacerbados, tumultuados, que em geral se associam à afeição votada a pessoas e mesmo a coisas e atividades: ‘Matou-se por paixão’, ‘É apaixonado por carros’, ‘Tem paixão pelo futebol’.

Do ponto de vista filosófico, porém, o termo ‘paixão’ possui significados mais amplos e neutros quanto ao bem e ao mal. Em seu significado etimológico, paixão se contrapõe a ação. Isso fica mais claro nas línguas inglesa e francesa, em que esses vocábulos, passion e action, estão mais próximos de sua origem latina. Ação atuar, agir; paixão sofrer a ação, recebê-la passivamente.

Nesse sentido básico, e hoje em dia em desuso, poder-se-ia dizer que ação e paixão são como as faces de uma mesma moeda. Sempre que algo age, alguma outra coisa sofre paixão. Eu bato na mesa ação; a mesa recebe a pancada paixão. O mesmo fenômeno que para mim é ação, para a mesa é paixão.

Aqui estamos interessados não em coisas em geral, mas no ser humano, que pode, ele também, agir e sofrer paixão. Nesse caso, porém, o conceito de paixão se tornará mais específico, como veremos.

Na visão de homem estabelecida pelo Espiritismo, ele é um ser dual, composto de corpo (matéria) e alma (espírito). Embora remonte à Antigüidade, essa visão dualista tornou-se proeminente na filosofia a partir da contribuição de René Descartes (1596-1650). Um dos maiores filósofos e cientistas de todos os tempos, Descartes foi o principal responsável pela inauguração da filosofia moderna, renovando amplamente as teorias e conceitos filosóficos anteriores. Esteve ainda entre os criadores da ciência moderna, ao lado de Galileo e Newton, Boyle e Huygens, entre outros.

Em sua doutrina, o sábio francês dissociou da alma a função de mantenedora da vida orgânica, tomando-a unicamente como o ser pensante, independente da matéria. Uma análise cuidadosa revela muitos pontos comuns entre as visões espírita e cartesiana do homem. Não podemos adentrar esse vasto e difícil assunto neste pequeno texto. Iremos apenas destacar alguns elementos mais diretamente ligados à questão das paixões. O último livro de Descartes publicado durante sua vida trata especificamente das paixões, intitulando-se justamente As Paixões da Alma (Les Passions de l’Âme, 1649). Essa obra exerceu grande influência no futuro das discussões filosóficas acerca das paixões, só sendo rivalizado, no século seguinte, pelas obras do grande filósofo escocês David Hume (1711-1776), escritas dentro de perspectiva filosófica bastante diversa.

Dadas as grandes transformações por que passou a física em nosso século, não é possível expressar em linguagem ordinária como a ciência contemporânea caracteriza a matéria. Na concepção cartesiana, que prevaleceu e influenciou profundamente toda a ciência por quase trezentos anos, matéria é a substância extensa, com forma e movimento, que preenche todo o universo e atua exclusivamente por forças mecânicas de contato. No nível dos objetos com que lidamos enquanto homens comuns, podemos pensar na matéria aproximadamente ao longo dessas linhas, mas apenas para fixar idéias, conscientes de que essas noções não mais bastam às novas teorias físicas.

Quanto ao espírito, para Descartes ele era, como já indicamos, a substância pensante, a sede do pensamento, da vontade e dos sentimentos. Ao contrário de sua concepção de matéria, essa idéia de espírito mostra-se perfeitamente adaptável ao que conhecemos hoje, não mais pelas ciências acadêmicas, que por sua natureza não se ocupam com isso, mas pela ciência espírita, inaugurada por Allan Kardec.[3]

Podemos, para os nossos propósitos aqui, considerar a alma ou espírito como tendo três “faculdades” (termo de Descartes):

1. vontade;
2. pensamento;
3. percepção.

A vontade se exerce quando a alma quer algo; o pensamento, quando ela raciocina, duvida, compara, abstrai etc. Pensamento e vontade assim definidos são, por assim dizer, as “dimensões” ativas da alma. A percepção seria, por outro lado, sua dimensão passiva. Isso fica mais claro quando enumeramos as formas gerais dessa percepção:

a. sensações dos corpos (formas, solidez, cores, sons etc.);
b. percepções das operações da própria alma (percepção de que está raciocinando, duvidando, querendo, imaginando, sentindo etc.); e
c. sentimentos (amor, ódio, tristeza, alegria etc.)

Em um sentido filosófico um pouco mais específico do que aquele já apontado, ligado à etimologia do termo ‘paixão’, todos esses três tipos de percepção poderiam ser ditos (e o são por Descartes) paixões da alma, porque ao contrário dos atos volitivos e intelectuais, acontecem passivamente à alma quando ela se encontra em determinadas situações. Quando o corpo a que está associada tem seus sentidos despertos e em bom funcionamento, postos em contato com uma vela acesa, por exemplo, a alma sentirá, quer queira, quer não, uma certa forma, uma certa luz, um certo calor (sensações). Quando a alma se auto-examina, ou, em linguagem filosófica, reflete, introspecta, não pode deixar de perceber que está raciocinando, ou duvidando, ou querendo algo, se de fato estiver (percepções das operações da alma). Por fim, diante de um gesto amigo ou de um carinho, sentirá a alma o amor; diante de uma ofensa, poderá sentir ódio ou mágoa; recebendo uma boa notícia, perceberá sua alegria, e assim por diante (sentimentos).

Chegamos, finalmente, ao ponto pretendido. Em seu sentido filosófico mais estrito a palavra ‘paixão’ denota exatamente esta última modalidade de percepções da alma: sentimentos como o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a admiração e o desejo.

Descartes considerava que as seis paixões que acabamos de enumerar eram básicas, enquanto que as demais, tais como o orgulho e a humildade, a veneração e o desdém, a esperança e o desespero, o medo e a coragem, a vergonha e a cólera, o remorso e a piedade seriam derivadas das paixões fundamentais por combinações e variações.

Não haveria espaço para explicar ou reproduzir aqui a complexa teoria cartesiana das paixões. Tampouco nos deteremos sobre a interessante análise que faz de cada paixão em particular, análise que ocupa boa parte do livro As Paixões da Alma. Ressaltaremos, entretanto, alguns pontos que podem contribuir para a nossa compreensão da natureza desses sentimentos.

No referido livro, assim como em outras obras, Descartes elabora detalhada teoria fisiológica que, embora hoje em dia possa parecer tosca e quimérica em muitos aspectos, representou um trabalho pioneiro, exercendo significativa influência no posterior desenvolvimento da ciência biológica.

A teoria cartesiana descrevia o corpo humano, como aliás todo universo material, em termos de um conjunto incrivelmente complexo de corpúsculos que agem sob leis mecânicas, leis que o próprio Descartes havia deduzido de pressupostos racionalistas na obra Os Princípios da Filosofia, de 1644. Ele foi um dos primeiros cientistas a reconhecer a teoria da circulação do sangue, proposta por William Harvey no início do século XVII. Descartes mantinha (de forma não totalmente original) que no sangue havia certos corpúsculos materiais extremamente pequenos e móveis, chamados espíritos animais. Não obstante o nome, não se tratava de modo algum de espíritos no sentido de seres inteligentes, mas de matéria pura e simples. Essas partículas diminutas eram como que “filtradas” nos “poros” do cérebro, passando a percorrer os nervos. O fluxo dos espíritos animais no sistema nervoso é a chave para explicar, na teoria cartesiana, fenômenos fisiológicos e psico-fisiológicos fundamentais, como o funcionamento dos sentidos, as motricidades voluntária e involuntária, e as próprias paixões da alma. Embora as paixões sejam percepções da alma, tinham, segundo essa teoria, uma contraparte fisiológica essencial. Infelizmente não poderemos fornecer detalhes aqui.

Abrimos um parêntese para mencionar um aspecto da teoria psico-fisiológica de Descartes que chama a atenção de pesquisadores espíritas: o papel central atribuído à glândula pineal, ou epífise, situada na base do cérebro. Até bem recentemente, a ciência acadêmica considerava que essa glândula não exercia nenhuma função relevante no homem adulto, julgando, pois, errônea a teoria de Descartes. No entanto, descobertas recentes vêm levando uma revisão dessa posição; a pineal parece ter determinante influência no controle de outras glândulas importantes, e portanto em toda a economia orgânica. Décadas antes que se começasse a perceber isso nos círculos oficiais, o cientista espírita desencarnado André Luiz recuperou e desenvolveu os elementos aproveitáveis da teoria cartesiana. Ambos, Descartes e André Luiz, atribuem à pineal o papel mais importante na ligação alma-corpo; seria, nas palavras do primeiro deles, como que a “principal sede da alma”, o lugar do mundo orgânico onde a alma “exerce imediatamente suas funções” (As Paixões da Alma, § 32).

Voltando à análise do conceito restrito de paixão, enfatizemos que ele preserva o elemento essencial da noção abrangente: a passividade. Amor, ódio, alegria, tristeza e demais paixões são algo que “se apodera” de nós de forma involuntária: pelo menos na sua gênese imediata não temos nenhuma participação voluntária. Embora Descartes não se tenha servido desta expressão, poderíamos dizer, simplificadamente, que para ele as paixões eram o resultado de uma espécie de automatismo psico-fisiológico. Na esfera fisiológica, esse automatismo envolvia, de forma essencial, o fluxo dos espíritos animais e sua interação com a pineal; na mente, manifestava-se como as percepções de amor, ódio etc., que cada homem sabe o que são por experiência direta.

Desnecessário notar que a ciência contemporânea não mais utiliza a noção de espíritos animais. No entanto, temos aqui mais um caso típico da história da ciência em que, embora rejeitados pela evolução da ciência, conceitos e teorias do passado aparecem ainda, embora bastante modificados, refinados e complementados, nas teorias mais recentes. A idéia geral de que algo percorre os nervos, trazendo as informações sensoriais para o encéfalo e conduzindo para os órgãos motores os impulsos nele originados mostrou-se fecunda e sustentável, estando presente na teorias científicas contemporâneas, que descrevem esse algo em termos de correntes elétricas.

Também a associação das paixões a um certo automatismo pode ser mantida até hoje. Estendendo de maneira profunda e segura a investigação do ser humano, o Espiritismo modificou e complementou a descrição desse automatismo, que deixa de estar centrado na estrutura fisiológica, residindo antes no próprio espírito, em sua existência que antecede e sucede à do corpo denso, com possíveis influências também do seu envoltório perispiritual. Assim é que se constata por observação direta que os Espíritos desencarnados continuam tendo sentimentos aparentemente semelhantes às nossas paixões. Isso indica que a causa imediata das paixões não se pode reduzir a processos referentes ao corpo denso, como achava Descartes. O fato de que diante de determinados estímulos externos ou internos a alma é automaticamente objeto daqueles sentimentos que chamamos paixões deve-se a uma faculdade inerente à própria alma, que tem uma razão de ser providencial, conforme vimos na introdução deste trabalho. (Retomaremos esse tópico mais adiante.)

Detenhamo-nos agora sobre as causas mediatas ou primeiras das paixões. Estas eram por Descartes classificadas em três grupos (As Paixões da Alma, § 51):

i. os objetos dos sentidos: alguém escuta uma boa notícia e sente alegria;  uma criança sendo maltratada e sente indignação ou cólera; cheira fumaça e sente medo de incêndio;

ii. as ações da alma: alguém pensa em suas qualidades e sente orgulho ou humildade; duvida da sinceridade de um amigo e sente tristeza; imagina os efeitos de uma tragédia e sente pena dos envolvidos;

iii. o “temperamento do corpo” e as “impressões que se encontram fortuitamente no cérebro”. São desse tipo, por exemplo, as paixões que temos “quando nos sentimos tristes ou alegres sem que possamos dizer o motivo”.

Este último item enseja aos pesquisadores espíritas outra oportunidade de complementar o que afirmou Descartes. Pelas investigações científicas dos fenômenos espíritas, conhecemos inúmeros fatos e leis da realidade espiritual que o filósofo aparentemente ignorava. É indubitável que alterações diversas do corpo, especialmente do sistema nervoso, podem de fato fazer surgir sentimentos ou paixões na alma. No entanto, sabemos que em muitas ocasiões em que não encontramos sua causa última naquilo que explicitamente observamos, quer no mundo exterior e em nossos corpos, quer em nossa alma, podem dever-se a fatores espirituais, tais como as vivências no mundo espiritual durante o sono, as influências obsessivas e telepáticas de um modo geral, ou a emersão parcial de nosso pretérito remoto.

3. O controle das paixões

Chegamos agora a um ponto saliente do estudo das paixões, enfatizado na seção de O Livro dos Espíritosque estamos analisando, e que recebeu também grande atenção da parte de Descartes: a questão de seu controle, domínio ou governo. Dada a própria conceituação de paixão, ou seja, de algo que acontece involuntariamente em nossa alma, uma impressão preliminar poderia ser a de que as paixões escapam, por sua própria natureza, a toda possibilidade de controle voluntário. No entanto, o assunto é complexo, e exige exame mais detido. Comecemos transcrevendo o item 909 de O Livro dos Espíritos:

909. Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?

“Sim, e, por vezes, fazendo esforços pequenos. O que lhe falta é a vontade. Ah! quão poucos dentre vós fazem esforços!”

Embora não se fale aqui explicitamente em paixões, está claro a partir do contexto que as referidas “más inclinações” estão associadas ao desvirtuamento dos sentimentos naturais que estão na origem das paixões. Temos, por exemplo, uma tendência que parece natural, maior ou menor conforme a pessoa, de sentir orgulho quando nos elogiam, mágoa quando nos ofendem, inveja quando vemos alguém possuir aquilo que queríamos para nós próprios. Nos itens 910 e 911 a referência às paixões se torna explícita. No primeiro deles assevera-se que os bons Espíritos podem nos auxiliar a vencer as más paixões, pois que “é essa a missão deles.” O segundo vai agora transcrito em sua íntegra:

911. Não haverá paixões tão vivas e irresistíveis, que a vontade seja impotente para dominá-las?

“Há muitas pessoas que dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém muito satisfeitas ficam que não seja como “querem”. Quando o homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se compraz nelas, em conseqüência de sua inferioridade. Compreende a sua natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para ele, uma vitória do Espírito sobre a matéria.”

Repare-se que nessas passagens o conceito de paixão está sendo restringido ao seu uso mais ordinário, de algo com conotação negativa, que requer controle ou superação. Isso não implica que devamos dissociá-lo de sua significação filosófica original, esboçada na seção precedente. Tudo o que nela foi visto aplica-se também aqui, onde se trata de paixões particulares, aquelas que redundam em um mal qualquer para algo ou alguém.

Feitas essas ressalvas, retomemos o cerne desses três quesitos de O Livro dos Espíritos. Neles se afirma resolutamente que as paixões negativas podem ser controladas pela vontade. Como fica então a conclusão a que havíamos chegado pela análise filosófica de que as paixões são aparentemente incontroláveis? Veremos agora que esse é um conflito apenas aparente, que se dissolve diante de um exame mais acurado. Descartes empreendeu ele próprio esse exame, e podemos aproveitá-lo quase que integralmente aqui, com as necessárias simplificações. Esses estudos de grande beleza e profundidade encontram-se principalmente nos parágrafos 44 a 50, e 137 a 148 de As Paixões da Alma.

Iniciemos pelo parágrafo 46. Quando sofremos uma paixão qualquer, embora seu afloramento seja espontâneo, involuntário, dado o automatismo que opera em nós, podemos, por nossa vontade, não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pernas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante. [4]

Eis, portanto, uma constatação simples, porém altamente relevante para o controle das paixões: sustar os seus efeitos maléficos sobre as coisas e pessoas. Isso está em nosso poder, desde que tenhamos vontade firme e discernimento moral para reconhecer quais os efeitos bons e quais os ruins. (Abordaremos o assunto do senso moral na próxima seção.)

No entanto, ainda que exercida eficazmente essa limitação das manifestações externas das más paixões resta o fato de que elas continuam existindo enquanto fenômenos de nosso mundo íntimo, ou seja, os sentimentos continuam presentes em nossa alma, prejudicando-nos a paz interior. O que fazer agora?

Descartes enfatiza que a vontade não tem o poder de excitar ou suprimir diretamente as paixões (§ 45). Um pouco de reflexão leva-nos a concordar com ele. Bastará ao orgulhoso simplesmente querer ser humilde? De alguma coisa adiantará ao que está triste dizer para si próprio: ‘Ficarei alegre agora’? Vencerá alguém a mágoa simplesmente desejando alijar-se dela? Parece que não; falta algo além da vontade.

O que seria esse algo não se explicita na seção em exame de O Livro dos Espíritos. A resposta está implícita no conjunto da obra e suas complementações. Um dos méritos do texto de Descartes é justamente o de enfocar o problema de forma quase explícita. (Dissemos quase porque o que exporemos a seguir é fruto de uma elaboração de várias observações e asserções de Descartes.)

O filósofo francês afirma, notemos bem, que não temos controle direto sobre as paixões. Isso não significa que não possamos controlá-las indiretamente, mediante certos artifícios. Consideremos uma útil analogia de que Descartes lança mão no parágrafo 44. Constitui fato patente que há certos movimentos corporais sobre os quais a vontade é incapaz de atuar diretamente, como a abertura ou fechamento das pupilas: ninguém as abre ou fecha voluntariamente. No entanto, podemos facilmente fazê-las se fechar ou abrir indiretamente, voltando nossos olhos para uma região mais clara ou outra mais escura. Sobre os movimentos dos olhos, pálpebras e face temos pleno controle e, explorando o automatismo fisiológico, logramos controlar a abertura das pupilas de forma indireta. As paixões, diz Descartes (§ 45), podem, de forma análoga, ser excitadas ou suprimidas indiretamente pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que queremos rejeitar. Assim, para excitarmos em nós a coragem e suprimirmos o medo, não basta ter a vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos a considerar as razões, os objetos ou os exemplos que persuadem de que o perigo não é grande; de que há sempre mais segurança na defesa do que na fuga; de que teremos a glória e a alegria de havermos vencido, ao passo que não poderemos esperar da fuga senão o pesar e a vergonha de termos fugido, e coisas semelhantes.

Como no caso da abertura das pupilas, podemos estudar o automatismo das paixões e colocá-lo a nosso serviço. O exemplo dado por Descartes refere-se à paixão do medo. Tentemos ver como seria no caso da mágoa. Diante de uma ofensa, pode acontecer de ficarmos magoados, quer queiramos ou não. Reconhecendo porém os malefícios desse sentimento, aplicamo-nos em combatê-lo. Para tanto, temos que nos “representar” coisas que sabemos estar unidas ao perdão e que são contrárias à mágoa. Podemos, por exemplo, ponderar que o ofensor é uma pessoa infeliz; que não teve ainda a glória de ascender a um patamar comportamental melhor; que pode ter agido sob o peso de problemas que desconhecemos; que pode não ter encontrado na infância pais devotados e bons que lhe ensinassem a virtude por palavras e atos; que ele colherá frutos amargos de sua ação; que, de nosso lado, havemos de possuir em nosso passado fatores que determinaram a necessidade ou conveniência de enfrentarmos semelhante provação. Examinando as obras espíritas voltadas à orientação moral, é fácil encontrar muitas considerações desse teor. Os bons autores espíritas sabem que a melhoria moral da criatura não é uma questão de prescrições, de proibições, mas de esclarecimento e de substituição de hábitos.

Falamos em hábitos e isso nos conduz a outro tópico da análise cartesiana. Quando recorremos à noção de automatismo para explicar o mecanismo das paixões devemos esclarecer mais sua natureza, se é permanente e inalterável ou não. Pois bem: Descartes sustentava que esse automatismo das paixões (embora, repitamos, não tenha usado essa expressão) podia ser alterado. Essa possibilidade era por ele entendida em termos das associações de pensamentos e movimentos corporais com os fluxos dos espíritos animais. Ele assumia que a Natureza determinava essas associações, mas que podíamos até certo ponto alterá-las “por hábito” (§ 50). Lembra, por comparação, que mesmo os animais podem ter suas reações naturais parcialmente alteradas por condicionamento (como diríamos hoje). O cão, que por uma disposição natural é levado a correr na direção da perdiz para apanhá-la, pode ser treinado para deter-se quando a vê, esperando pelo caçador. E conclui (§ 50):

Ora, essas coisas são úteis de saber para nos encorajar a aprender a regrar nossas paixões. Pois dado que se pode, com um pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais fracas poderiam adquirir um império bem absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las.

Deve estar claro que o “engenho” ou habilidade a que se refere Descartes é precisamente a aludida técnica de a alma “representar” para si as coisas que tendam a diminuir as paixões que quer combater e a incrementar as que lhe são contrárias. Desse modo, novas associações mentais se estabelecem (para ele seriam associações psico-fisiológicas), e as más paixões se vão amainando, até voltarem à sua condição natural e primitiva, incapaz de produzir males. A cólera, por exemplo, iria se transmudando em mágoa, e esta depois se reduziria à mera desaprovação, ao mero desagrado, natural e decorrente do próprio senso moral, de que não se pode nem deve abdicar.

4. As paixões e a moral

Até aqui tentamos analisar as paixões dos pontos de vista fisiológico, psicológico e anímico. Utilizamos as noções de paixões boas e más, de efeitos bons e maus, de malefícios e benefícios sem questionar a distinção do bem e do mal. É evidente que para aplicarmo-nos ao controle de nossas paixões é preciso antes saber distinguir o bem do mal. Isso cabe à área da filosofia denominada moral ou ética. Descartes e a maior parte dos grandes filósofos atribuíram grande importância ao estudo da moral, procurando determinar o critério do bem e do mal e os fundamentos nos quais se apóie. Não podemos adentrar esse assunto aqui. Iremos nos ater unicamente a alguns aspectos das relações entre as paixões e a moral, tratados em As Paixões da Alma.

No parágrafo 47, Descartes fornece uma explicação para o fenômeno psicológico do conflito entre aquilo que a alma quer e o que sente como paixão.[5] Não se trata, diz Descartes, de um combate entre a “parte inferior” e a “parte superior” da alma, conforme se costuma imaginar. A alma é una, não se concebe que tenha partes. A explicação do fato liga-se àquilo que, em adaptação da terminologia cartesiana, vimos denominando automatismo das paixões. Não desceremos aos detalhes dessa complexa explicação. Notemos apenas que é fácil entender o referido conflito quando se nota que a alma responde às situações, no nível das paixões, segundo reflexos parcialmente incondicionados e parcialmente condicionados, conforme vimos anteriormente. No plano intelectual e moral, porém, essas mesmas situações passam por exames via de regra conscientes e deliberados, podendo daí resultar serem apreendidas de modo diverso. Quando tratamos do controle das paixões estava implícito esse descompasso entre senso moral e paixões, pois o controle só é percebido como necessário quando as paixões não se harmonizam com aquilo que se julga ser correto ou bom.

O parágrafo 48 aborda a questão do esforço que a alma faz para superar esse conflito íntimo. Inspecionemos na íntegra esse interessante parágrafo (os destaques são nossos):

Ora, é pelo desfecho desses combates que cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma. Pois aqueles cuja vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes. Há, porém, os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate sua vontade juntamente com suaspróprias armas, mas apenas com as que lhes fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino próprias armas da vontade são os juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida. E as almas mais fracas são aquelas cuja vontade não se decide assim a seguir certos juízos, deixando-se arrastar continuamente pelas paixões presentes, que, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, puxam-na sucessivamente cada uma para o seu lado e, fazendo-a combater contra si mesma, colocam-na no estado mais deplorável possível. Assim, por exemplo, quando o medo representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga [do perigo], e a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, tornando assim a alma escrava e infeliz.

A “força” da alma é definida com referência à sua vontade. As pessoas de vontade fraca deixam-se simplesmente levar pelas paixões, tão amiúde contrárias umas às outras, do que resulta o mais deplorável estado de alma. No entanto, só a vontade forte não basta; é necessária a utilização das “armas” da vontade, que são “juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal”. Ou seja, a alma precisa saber distinguir de forma segura o bem do mal. Tem de possuir critérios morais sólidos, caso contrário poderá aplicar sua vontade sobre alvos errados, dando combate a paixões boas ou cultivando paixões más, como acontece, por exemplo, com quem alega que a humildade não se coaduna com a dignidade humana, ou que o ciúme é necessário ao amor.

No parágrafo seguinte (49), Descartes observa que “há pouquíssimos homens tão fracos e irresolutos que nada queiram senão o que suas paixões lhes ditam”. Isso, porém, não é tudo:

Há, entretanto, grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se apóiam tão-somente no conhecimento da verdade, visto que se seguirmos estas últimas estaremos certos de não ter jamais do que nos lamentar nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as primeiras, quando lhes descobrimos o erro.

O conhecimento moral é, pois, de capital importância para que a alma alcance o equilíbrio interior, pela indispensável iluminação do processo de controle das paixões. E nesse particular o Espiritismo tem contribuições de alta relevância para fazer. De modo pioneiro na história do pensamento, forneceu à moral um embasamento seguro e objetivo, a partir da análise racional dos fatos da vida humana, vistos de uma perspectiva muito ampliada e detalhada com relação àquelas do materialismo ou das religiões dogmáticas. À luz do conhecimento espírita, o critério do bem e do mal, do certo e do errado, dos deveres e direitos, não é mais uma questão de gosto, de prescrições, de cultura ou de época, nem se funda “em algumas paixões pelas quais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir” (ibid., § 49). Resulta, antes, do exame objetivo das conseqüências de nossas ações, com vistas à aproximação gradual da felicidade.[6]

Para exemplificar o raciocínio, consideremos as paixões do amor e do ódio, da humildade e do orgulho, da piedade e da dureza, da esperança e do desespero, da coragem e do medo. Se perguntarmos quais delas devem ser cultivadas e quais reprimidas, a resposta pressuporá um certo critério moral. Evidentemente existe na humanidade terrena, em seu presente estado evolutivo, uma multiplicidade de critérios morais, capazes de levar a diferentes classificações das paixões enumeradas. Há quem julgue, por exemplo, que a humildade rebaixa a criatura; que a piedade é apanágio das almas frágeis; que a desesperança é a postura correta diante da triste situação do mundo e da natureza humana…

Com sua ética objetiva, o Espiritismo pode pôr termo a tais disparidades de opinião, indicando claramente quais as paixões e atitudes que melhor conduzem o homem à almejada felicidade, concebida em termos amplos e perenes. Na lista que demos, por exemplo, são as primeiras paixões de cada par, nunca as segundas, aquelas que devemos permitir que vicejem em nossas almas.

Ao mesmo tempo em que nos esclarece acerca do bem e do mal, o Espiritismo fornece os meios para podermos executar o controle das “más inclinações”, ao longo das linhas sugeridas por Descartes. Na seção anterior, exemplificamos esse processo no caso da mágoa. Procedendo de modo semelhante com as demais paixões, elas serão reconduzidas ao seu estado de pureza original, conforme se expressa nas questões 907 e 908 de O Livro dos Espíritos. Nos judiciosos comentários que as seguem, Kardec afirma que as paixões “são alavancas que decuplicam as forças do homem e o auxiliam na execução dos desígnios da Providência”. A finalidade boa das paixões é destacada em termos equivalentes por Descartes no parágrafo 52 de As Paixões da Alma: “o emprego de todas as paixões consiste apenas no fato de disporem a alma a querer coisas que a Natureza dita serem úteis a nós, e a persistir nessa vontade, assim como a mesma agitação dos espíritos [animais] que costuma causá-las dispõe o corpo aos movimentos que servem à execução dessas coisas”. (Ver também os parágrafos 137 e 138.)

Detenhamo-nos ainda um pouco sobre esse tópico. À primeira vista, é fácil reconhecer que o amor, a coragem e alegria, por exemplo, provêm de princípios bons e concorrem para o nosso bem. No entanto, mesmo essas paixões boas podem ser mal conduzidas e desvirtuadas, levando, respectivamente, ao ciúme, à temeridade e ao estouvamento.

Por outro lado, não é imediata a identificação de origens boas e providenciais das quais paixões como a cólera ou o orgulho possam provir. Descartes, Kardec e os Espíritos que com ele colaboraram nos asseguram que os há, todavia. Ensaiemos uma busca.

A cólera é o sentimento violento de desagrado e revolta que costuma surgir de ofensas físicas ou morais graves, não raro desaguando em ações retaliatórias variadas. Examinando o caso, percebemos que a face moralmente insustentável da cólera é a vingança, bem como o tumulto interior a que arroja. Entretanto, em suas origens podemos localizar algo bom: a desaprovação da agressão. Ora, tal desaprovação deflui naturalmente do senso moral, da faculdade de discernir o certo do errado, de que não podemos abdicar sem retroceder ao estágio da animalidade. O perdão que a ética espírita e cristã recomenda de modo algum significa a aprovação moral das ofensas.

O orgulho, por sua vez, é o sentimento de superioridade em relação aos semelhantes, capaz de induzir-nos a desprezá-los e até mesmo a subjugá-los, quando temos poder para tanto. Embora patentemente injustificável frente ao conhecimento espírita, remontando aos seus princípios talvez possamos identificar algo como a confiança nas próprias potencialidades. Sentimento benéfico, essa auto-confiança é indispensável para que não nos amolentemos, não descreiamos de nosso aprimoramento físico, intelectual, artístico e moral. É somente quando, por excesso, ultrapassa seus limites naturais, que ela se transmuda em orgulho pernicioso.

5. Na direção do Infinito

Não poderíamos concluir este pequeno trabalho sem mencionar que no final da terceira parte de seu livro Descartes apresenta brevemente um outro aspecto das percepções da alma, complementar ao das paixões, tais quais as entendia. Vimos que para ele estas últimas tinham sempre uma “contraparte” orgânica. Sugerimos, por nossa vez, que esse aspecto talvez não seja central nas paixões, que parecem antes ser inerentes à própria alma.

De qualquer modo, dentro do referencial que elaborou, Descartes também notou que há percepções da alma que radicam nela própria, ou, em suas palavras, “emoções interiores que são excitadas na alma apenas pela própria alma” (§ 147; grifamos). Um dos exemplos que dá é a “alegria intelectual” que sentimos quando lemos um romance ou assistimos a uma peça teatral em que as situações excitam em nós diversas paixões, como a alegria, a tristeza, o ódio, o amor, trazendo-nos todas uma espécie de prazer de ordem superior.

Vejamos estas belas passagens do parágrafo 148, em que Descartes desenvolve o tema:

Ora, visto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la. Servem, antes, para lhe aumentar a alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por elas ofendido, conhecer com isso a sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar contente, precisa apenas seguir estritamente a virtude. Pois quem quer que haja vivido de tal maneira que sua consciência não possa censurá-lo de alguma vez ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as melhores (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranqüilidade de sua alma.

Descartes aponta, assim, uma espécie de sublimação dos sentimentos, na direção da alegria perene e sem mácula que resulta tão-somente da prática da virtude. Essa a alegria que viveremos um dia, quando, pelos nossos esforços, lograrmos alcançar a excelsa condição de Espíritos puros.

Notas

1. Gostaria de agradecer a Márcio Corrêa, Cosme Massi e Matthieu Tubino pelos comentários feitos a versões preliminares deste trabalho.

2. Nesta e demais citações do Livro dos Espíritos utilizamos o texto original, aproveitando em grande parte a tradução de Guillon Ribeiro, publicada pela Federação Espírita Brasileira.

3. Sobre a ciência espírita, ver nossos artigos “O paradigma espírita” e “A excelência metodológica do Espiritismo”, bem como as referências neles contidas.

4. Nesta e demais citações desse livro utilizamos o original francês, aproveitando, quando possível, a tradução brasileira indicada na lista bibliográfica.

5. Essa tensão já havia aliás sido comentada, em termos diversos, por Paulo no capítulo 7 da Epístola aos Romanos.

6. Para uma análise sucinta desse ponto ver nosso artigo “Os fundamentos da ética espírita”.

Referências

 CHIBENI, S.S. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.

• —-. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33, e dezembro de 1988, pp. 373-78.

• —-. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.

• DESCARTES, R. Les Passions de l’Âme. In: Adam, C. e Tannery, P. (eds.) Oeuvres de Descartes. Tomo XI, pp. 291-497. Paris, Vrin, 1967. (As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. In: Descartes – Obra Escolhida, pp. 295-404. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973.)

• KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 64a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

(Artigo publicado em Reformador, abril/1998, pp. 112-15 e 125-7.)

Texto base para o Seminário desenvolvido por Cosme Massi Sobre as paixões, em Umuarama, Paraná, ao ensejo da realização do 9º Endesp – Encontro de Dirigentes Espíritas, promovido pela Inter-Regional Noroeste, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2008.

Da página da Federação Espírita do Paraná

Papai Noel existe!

the-sun

Editorial do The Sun, 1897
É com enorme prazer que respondemos à carta abaixo, aproveitando para expressar nossa enorme gratidão em reconhecer sua autora como fiel amiga doThe Sun.
Prezado Editor : Tenho 8 anos, alguns dos meus amiguinhos dizem que não existe Papai Noel. Meu pai costuma falar: “Se estiver no The Sun, então será verdade.” Por favor, me diga a verdade, Papai Noel existe?
Virgínia O’Hanlon
Virgínia, seus amiguinhos estão errados.
Provavelmente foram afetados pela descrença de uma época em que as pessoas acreditam em poucas coisas. Só acreditam naquilo que veem. Eles acham que o que não compreendem com suas cabecinhas não pode existir.
Todas as mentes, Virgínia, sejam dos adultos ou as das crianças, são limitadas.
Nesse nosso grande universo, o homem é um mero inseto, uma formiguinha, quando seu intelecto é comparado com o infinito que o cerca ou quando medido pela inteligência capaz de entender toda a verdade e conhecimento.
Sim, Virgínia, Papai Noel existe.
Isso é tão certo quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção, e você sabe que tudo isso existe em abundância trazendo mais beleza e alegria à nossa vida.
Ah! como seria triste o mundo sem Papai Noel!
Seria tão triste quanto não existir Virgínias. Não haveria então a fé das crianças, a poesia e a fantasia para fazer a nossa existência suportável.
Não teríamos alegria nem prazer a não ser com os nossos sentidos: seria preciso ver e tocar para poder sonhar.
A transparente luz das crianças, com a qual inundam o mundo, seria apagada.
Não acreditar em Papai Noel!… É o mesmo que não acreditar em fadas!
Você poderá pedir ao seu pai para contratar muitos homens para vigiar todas as chaminés na véspera de Natal e assim pegar Papai Noel; mas, mesmo que você não o visse descendo por elas, o que isso provaria?
Ninguém vê Papai Noel, mas não há sinais de que ele não existe.
Você por acaso já viu fadas dançando no jardim?
Claro que não, mas não há provas de que elas não estejam por lá.
Ninguém pode conceber ou imaginar todas as maravilhas do mundo que nunca foram vistas e que nunca poderão ser admiradas.
As coisas mais reais do mundo são aquelas que nem as crianças nem os adultos podem ver. Se quebrarmos o chocalho de um bebezinho, poderemos ver o que faz aquele barulho lá dentro, mas existe um véu cobrindo o mundo invisível, que nem o homem mais forte, nem mesmo toda a força de todos os homens mais fortes do mundo reunida poderia rasgar.
Somente a fé, a poesia, o amor e a fantasia podem abrir essa cortina e desvendar a beleza e a glória celestiais que existem por trás dela.
Será que tudo isso é real?
Ah, Virgínia, em todo este mundo não existe nada mais real e duradouro.
Se Papai Noel existe?
Graças a Deus ele vive e viverá para sempre.
Daqui a mil anos, Virgínia, e ainda daqui a dez mil anos ou dez vezes esse número ele continuará a fazer feliz o coração das crianças.

Filosofia, Religião e Ciência

Os conceitos da vida e do mundo que chamamos “filosóficos” são produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar “científica”, empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.

“Filosofia” é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento definido – eu o afirmaria – pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito? Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura Tais questões não encontram resposta no laboratório. As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com suspeita. O estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses problemas, constitui o empenho da filosofia.

Mas por que, então, – poderíeis perguntar – perder tempo com problemas tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador, tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas seguintes.

Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas, Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis. Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar àqueles que a estudam.

A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250). Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do que a Igreja.

A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a restrições impostas pelo Estado. O pensamento grego, até Aristóteles, é dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político. Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social, durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, foi assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força – primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos, primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.

Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.

O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o seu dever para com o Estado.(1) A opinião de que “devemos obedecer mais a Deus que ao homem”, como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino, permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou do Cristianismo de Constantinopla.(2) Mas no Ocidente, onde os imperadores católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda hoje.

A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu, em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em 1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano de Justiniano.

Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália, França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI ), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental, formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano 1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi, também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o que havia de mais civilizado no presente.

O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou rapto. É possível que os monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos, submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.

Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última consideração foi decisiva.

A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém – principalmente entre os frades franciscanos – havia alguns que, por várias razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.

Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. No período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos fatos recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico expoente da época.

Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada, em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares. Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de sentir dos homens, como jamais exercera antes – influência essa que, progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade da civilização.

Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral, tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas – de coesão social.

Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha, se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.

Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela Reforma. A Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade. Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na maior parte da Europa Setentrional.

A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica; sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente, romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes à Igreja – mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.

Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia, no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando, depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez social.

A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum cotidiano.

Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo, dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados, após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a origem do “quakerismo”. Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.

A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à “sensibilidade” começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.

O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores. Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente agradáveis.

Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão contrário ao “entusiasmo” – o individualismo dos anabatistas como à autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e que resulta a adoração do Estado.

Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando, portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente, que a felicidade não constitui o bem, mas que a “nobreza” ou o “heroísmo” devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.

É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que persiste durante longo tempo – tem a sua parte de razão e a sua parte de equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado, a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos, vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida, somente o futuro poderá demonstrá-lo.

Notas
1
. Essa opinião não era desconhecida em tempos anteriores: foi exposta, por exemplo, na Antígona, de Sófocles. Mas, antes dos estóicos, eram poucos os que a mantinham.
2. Eis aí porque o russo moderno não acha que deva obedecer mais ao materialismo dialético do que a Stalin.

In Russell, B. (1977): História da Filosofia Ocidental, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional.

http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/russell.htm