Religião e cultos afro-brasileiros

Carlos Toledo Rizzini

  1. Aprendemos que o Espiritismo, como maneira de compreender a Vida, o Espírito, Deus, etc., é uma religião interior. Esse sentimento leva à submissão ao Poder Supremo extraterreno: Deus e seus delegados. Assim define Emmanuel (Roteiro): 

“A religião é o sentimento divino que prende o homem ao Criador.”

A fé é a confiança nesse poder; a prece é uma declaração de confiança e submissão consciente, pelo que estabelece contato entre criatura e Criador, discípulo e Mestre, donde gera um estado de receptividade ao auxílio do Alto.

O Espiritismo não pode ser institucionalizado sob a forma de religião convencional. O seu templo é interno, seu ensino é racional e analisável, seus ritos são a prática do bem e a conduta correta. Por isso, esclarece e alimenta qualquer religião formal que o queira adotar e amplia a compreensão de qualquer crente. Não prega moral autoritária – manda conduzir-se de acordo com os princípios do Evangelho.

  1. No Brasil há vários cultos populares, cuja evolução espontânea partiu das práticas mediúnicas primitivas, que os escravizados negros trouxeram da pátria africana. Particularmente importante, por sua difusão, é a chamada Umbanda, muito conhecida no Rio de Janeiro. Como vimos, a mediunidade, ou antes, mediunismo: em sua forma natural, segundo distinção de Emmanuel, existe por toda a parte desde o princípio dos tempos. Nossos irmãos escravizados praticavam-no pura e simplesmente, na sua pátria. Trazidos para cá, foram forçados a enquadrar seus rituais nos moldes impostos pelos senhores brancos, que tinham uma religião rica de imagens e ritos.

Não é difícil compreender a mistura das duas atividades ao longo do tempo – isto é, o sincretismo religioso: o negro absorveu a parte ajustável ao mediunismo e foi anexando, aos seus rituais, imagens e costumes tomados aos brancos, já que estes pretendiam substituir o mediunismo pelo catolicismo. Ora, esse trabalho de assimilação e fusão data já alguns séculos, sendo, portanto, um desenvolvimento espontâneo. Por isso, às práticas mediúnicas evidentes aliam-se altares e estatuetas de santos, cujos nomes civilizados foram trocados por nomes africanos. Não existe ali, como é natural, uma doutrina elaborada: há comunicação com vários tipos de entidades espirituais do nosso plano evolutivo, a maioria das quais deseja o bem, assim como os praticantes humanos; mas existem, também, nos dois planos, os trabalhadores do mal. Porém, em todos os casos, o caráter manifesto das crenças, manifestações e trabalhos é a materialidade, razão de tanto apelo a “despachos” contendo objetos pouco estimáveis. É claro que não cabe a crítica – e sim, a compreensão: aí, como em tudo o mais, a questão crucial é o nível evolutivo dos espíritos e pessoas. É lógico que um espírito superior nem bebe, nem fuma etc. O que Deus permite não deve ser objeto de crítica da criatura e terá uma razão de ser; procurem-na…

O Espiritismo nada tem a ver com os cultos afro-brasileiros. Mas veio reforçá-los e justificá-los em virtude da mediunidade. Essa relação fenomênica fez com que o nome “espiritismo” passasse a ser usado nos terreiros, sem que a doutrina influísse na melhoria do ambiente, e a confusão é a tal ponto completa que é impossível sequer tentar desfazê-la mediante explicações e argumentos racionais.

Tudo é “espiritismo” e está acabado! Em 1941, houve no Rio de Janeiro um “Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda”, expressão que se vulgarizou bastante.    

Estudamos antes a origem do Espiritismo: é a doutrina científica de consequências morais e religiosas que os Espíritos Superiores ensinam e Allan Kardec organizou metodologicamente.

A própria palavra Espiritismo foi cunhada por ele, o Codificador. Tem pouco mais de um século sua existência e surgiu em Paris. Não possui nenhuma prática ligada a objetos materiais. Seus trabalhos são todos realizados pela força do sentimento e do pensamento; não propicia espíritos com solenidades, cantos e dádivas, pois objetiva a melhoria deles e dos homens.

(RIZZINI, Carlos Toledo. Evolução para o terceiro milênio: tratado psíquico para o homem moderno. Sobradinho, DF: EDICEL, 14ª ed., 2003, pp. 65-67)

As muitas cidades espirituais

Não se turbe o vosso coração. — Credes em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já eu vo-lo teria dito, pois me vou para vos preparar o lugar. — Depois que me tenha ido e que vos houver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a fim de que onde eu estiver, também vós aí estejais. (S. João, 14:1 a 3.)

Em seu Capítulo III, O Evangelho Segundo o Espiritismo aborda a existência das muitas moradas espirituais, diferentes mundos habitados, bem como locais para acomodação temporária dos Espíritos no trânsito entre suas encarnações.

Embora o Evangelho organizado por Kardec não tenha detalhado o tema da diversidade dos mundos, nem por isso a obra do Codificador deixou de trazer referências sobre as múltiplas habitações do Espírito no Universo, como podemos observar no relato da Condessa de Paulo, citando as “moradas aéreas”, em O Céu e o Inferno:

“Que são vossos palácios e salões dourados comparados às moradas aéreas, aos vastos campos do Espaço matizados de cores que fariam o arco-íris empalidecer?” – A Condessa Paulo (KARDEC, 2021, p. 257)

Habitar os diferentes mundos não se trata de uma escolha, mas atendimento aos critérios impostos pelas próprias condições do Espírito, que pode ocupar tanto os mundos e lugares de expiações e de provas, quanto os de regeneração e felizes, sempre como expressão de seu grau de necessidade e de evolução moral.

A existência das muitas moradas não é referida apenas no Novo Testamento ou na Codificação Espírita, tendo sido citada ao longo da história em outras culturas e crenças. Na tradição hindu, por exemplo, os Upanishads, textos da que remontam pelo menos ao século VIII a.C., falam de cidades celestiais, como Amaravati, a morada de Indra, o deus do céu e da guerra (Chandogya Upanishad 8.11). Também no épico Ramayana é descrita a cidade celestial de Ayodhya, a capital do reino de Rama (Ramayana, Book 5). Nesses relatos, as cidades do céu, ou “cidades celestiais”, são mencionadas como lugares de grande beleza e de tecnologia avançada, habitadas por deuses e seres iluminados. Essas narrativas frequentemente simbolizam a ligação entre o divino e o terrestre, representando a aspiração humana à transcendência e ao conhecimento superior.

Nas psicografias de Chico Xavier, encontramos referências sobre a integração entre a população encarnada da Terra e os irmãos da grande pátria espiritual:

A humanidade terrestre, constituída de milhões de seres, une-se à humanidade invisível do planeta, que integra muitos bilhões de criaturas. Não seria, portanto, possível atingir as zonas aperfeiçoadas, logo após a morte do corpo físico. Os patrimônios nacionais e linguísticos remanescem ainda aqui, condicionados a fronteiras psíquicas. Nos mais diversos setores de nossa atividade espiritual existe elevado número de espíritos libertos de todas as limitações, mas insta considerar que a regra é sofrer-se dessas restrições. Nada enganará o princípio de sequência, imperante nas leis evolutivas. (XAVIER, 2020, c. 24)

Não estamos, porém, nas esferas de absoluta pureza mental, onde todas as criaturas têm afinidades entre si. Afinamo-nos uns com os outros, em núcleos insulados, e somos compelidos a prosseguir nas construções transitórias da Terra, a fim de regressar aos círculos planetários com maior bagagem evolutiva. (XAVIER, 2020, c. 37)

As muitas moradas devem ser compreendidas de forma ampla, não sendo apenas sinônimo de mundos ou de planetas, mas envolvendo todos os locais de que a espiritualidade se utiliza para instalar os Espíritos.

André Luiz, por exemplo, nos explica na obra Cidade no Além que a vida nas várias cidades espirituais não representa um grande salto de renovação, mas um passo necessário no esclarecimento e na continuidade da evolução em que a vida terrestre é apenas um breve estágio:

“Nas colônias-cidades ou colônias-parques que gravitam em torno do Plano Físico, para domicílio transitório das inteligências desencarnadas, é natural que a luta do bem para extinguir o mal ou o desequilíbrio da mente, continue com as características que lhe conhecemos na Crosta da Terra.”“Nas comunidades de criaturas desencarnadas, a afinidade é o clima ideal para a união dos seres, o interesse pela ascensão do Espírito aos planos superiores é a marca de todos aqueles que já despertaram para o respeito a Deus e para o amor ao próximo, o trabalho do bem é incessante, a religião não tem dogmatismo, a filosofia acata os melhores pensamentos onde se manifestem, a ciência é humanitária e o esforço pelo próprio aperfeiçoamento íntimo é impulso infatigável em todas as criaturas de boa vontade.” (XAVIER e CUNHA, 2007)

As Esferas Espirituais integram a Terra em diferentes faixas vibratórias. Na Crosta terrestre encontra-se a condição mais densa e mais materializada, tal o grau em que se encontram seus habitantes, nas faixas vibratórias se se sucedem, rumo ao espaço, há o Umbral grosso, o Umbral médio, o Umbral (em que se situa a cidade espiritual Nosso Lar) sucedido pelas esferas da Arte em Geral ou Cultura e Ciência, Amor Fraterno Universal e a faixa mais elevada, de Diretrizes do Planeta, onde a espiritualidade empreende esforços pela evolução de todos os habitantes do planeta, encarnados ou não. 

A estrela junto à faixa em verde indica a região do Umbral onde se situa a cidade espiritual de Nosso Lar (XAVIER e CUNHA, 2007)

 

Nas faixas mais próximas ao orbe terrestre, desde o Umbral grosso, que circunda a Crota, até o Umbral, a espiritualidade dispõe de albergues que atendem entidades ainda com dificuldade em perceber e ouvir os benfeitores espirituais. Os albergues funcionam como hospitais-escolas, em que se recolhem Espíritos de bons sentimentos, mas ainda não conhecedores das leis da reencarnação, que são trazidos às salas de aula da Federação Espírita e da Casas Espíritas, onde adquirem esclarecimentos necessários a sua evolução. (THOMAZ, p. 72; XAVIER e CUNHA, 2007).

Importa observar que o mundo espiritual, além das chamadas cidades astrais, lança mão de recursos de alta tecnologia, como naves, distribuídas por sobre todo o planeta. Assim, além dos albergues, a espiritualidade dispõe dessas Casas Transitórias, espalhadas sobre a Crosta, que mantêm contatos permanentes entre si e se movimentam de acordo com a necessidade local. As Casas Transitórias se encontram em constante movimentação, recolhendo doentes e ensinando os que se recuperaram a ajudar aqueles que estão chegando cheios de dores, mágoas e aflições. (THOMAZ, pp. 73-74).

Do mesmo modo que o telescópio James Webb aprofunda o conhecimento da ciência ao desvendar os limites da criação divina pelo Universo, a espiritualidade nos oferece notas sutis da vastidão do mundo invisível e suas habitações, em uma robusta interação com a comunidade de encarnados terrenos.

Referências:

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Trad. Emanuel Dutra. Guarulhos, SP: FEAL, 1ª ed., 2021.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. C. III. Trad. Guillon Ribeiro. Catanduva, SP: Nova Visão, 2ª ed., 2019.

PRASAD, M. N. (Org.). Chandogya Upanishad: Translation and Commentary (Rediscovering Indian Literary Classics). D.K. Printworld; 2006. 

THOMAZ, Martha Gallego. O Instituto de Confraternização Universal e as Fraternidades do Espaço. São Paulo: FEESP, 2ª ed., 1995.

XAVIER, Francisco Cândido, médium, André Luiz, Espírito. Nosso Lar. Col. A Vida no Mundo Espiritual. V. 1. Rio de Janeiro: FEB, 2020.

XAVIER, Francisco Cândido, médium, CUNHA, Heigorina. André Luiz, Espírito. Cidade no Além. Catanduva, SP: IDE, 2007.