Realeza

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(Caravaggio. Ecce Homo, 1605) (reprodução)

Ev. Cap. II – Item 4

(…) Tu o dizes: sou rei; não nasci e não vim a este mundo, senão para dar testemunho da verdade.

João, cap. XVIII, v.37.

A sombra coletiva sempre impõe aos homens e mulheres que lhe padecem as injunções, mediante aquela que lhes é própria, a disputa pela conquista dos lugares transitórios de proeminência e domínio no concerto social e na cultura de cada época, elevando os pigmeus atormentados que se notabilizam pelas excentricidades ou astúcias, perversidades ou heranças ancestrais para, deslumbrados e iludidos, exibirem o triunfo externo sobre as demais criaturas, embora, muitas vezes, sob os camartelos da frustração, do vazio existencial, das tormentosas ambições desmedidas.

Ser rei significava, no passado, a conquista de uma condição que se atribuía como divina, conforme os parâmetros da loucura, apresentando-se superior aos outros, que lhe deviam prestar subserviência, como se a sua fragilidade orgânica estivesse indene à presença do sofrimento, da solidão, da amargura, da velhice, da doença e da morte.

A exaltação do ego exacerbava-lhe os interesses e anestesiava-lhe o discernimento que, bloqueado, deixava a personalidade conduzir-se como se tudo à sua volta lhe devesse obediência e bajulação, crendo-se indestrutível…

Imaturos psicologicamente, tais indivíduos acreditavam nessa fantasia, disfarçando-se com indumentárias exóticas e nababas que, apesar disso, não lhes ocultavam as torpezas morais e torturas emocionais.

Frágeis, porém, sucumbiam ou eram despidos do poder mediante a mudança dos ventos políticos ou das paixões dos adversários que sempre vivem em disputas ferrenhas e doentias.

Ainda hoje é assim em todas as expressões comportamentais das variadas posições apresentadas pela política humana, seja na religião, na sociedade, na ciência, na educação, onde quer que se movimentem as criaturas sonhadoras vitimadas pelo jugo da sombra.

Pilatos representava, naquela circunstância, o poder temporal que o amarguraria depois, levando-o a sucumbir quando destituído mais tarde por outrem mais poderoso, ao sopro das anteriores brisas bonançosas que se transformaram em tempestades destruidoras.

A sua preocupação com Jesus estava assentada no medo de perder a governança, de ser vítima das contravenções que sustentava para manter o poder entre intrigantes e pérfidos que o vassalavam em expressivo número.

Diante daquele Homem compassivo e submisso, as suas projeções e receios desapareceram.

Ali não se encontrava um competidor vulgar, mas um triunfador sobre si mesmo, que não disputava nada porque já possuía o mais importante tesouro de paz.

Na sua fragilidade o condenado se apresentava forte e imbatível, amarrado e livre, lanhado e indiferente ao suplício, coroado de espinhos e nobre, ao mesmo tempo muito distante das questiúnculas miseráveis da sombra, cuja pergunta não poderia deixar de ser-Lhe feita: – És, pois, rei?

Desejava sabê-lo dEle próprio, porque os Seus inimigos O apresentaram como rei dos judeus, portanto, perigoso. A Sua resposta, porém, não deixava dúvida, ao afirmar que o Seu reino não é deste mundo.

Aturdido com aquela sinceridade e com o Seu desinteresse pelas mentiras terrestres, não poderia sopitar a curiosidade de saber mais, de dar largas à sombra, tranquilizando-se em seu trono de infantilidade e de jogos que o distraíam com prazeres doentios.

Jesus, profundamente livre, elucidou, por fim: – Não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz.

A verdade espanca a sombra, ilumina a ignorância, liberta dos atavismos do inconsciente, é-lhe a chave única, preparando para a vida permanente, aquela que não se extingue com a presença da morte.

Jesus é o exemplo do ser integrado, perfeitamente destituído de um inconsciente perturbador. Todas as suas matrizes arquetípicas vêm da herança divina nEle existente e predominante.

A vida futura, portanto, é o delineamento essencial do Seu ministério, em razão da consciência da Sua realidade, por onde transita desde então, aprisionado ao corpo, mas inteiramente possuidor da faculdade de sintonia e contato com essa Causalidade.

A Sua trajetória é desenhada na certeza da vida espiritual, aquela que aguarda a todos, a que se insere no contexto das realizações, por ser fundamental na constituição dos ideais e das perspectivas da vida.

O Seu apostolado fixa-se no objetivo ôntico espiritual, no despojar dos condicionamentos e impregnações do trânsito corporal, que representa aprendizagem para alcançar a destinação que aguarda as criaturas terrestres.

Não houvesse a vida futura, nenhum significado existiria em Sua vida -, em todas as vidas – no esforço hercúleo para erguer o ser humano do seu primarismo e recomendar-lhe a incessante luta pela transformação moral, pela aquisição de mais apuradas percepções psíquicas, que se constituem elementos básicos para a constatação desse desiderato.

Essa meta, que deve ser alcançada, justifica todas as dificuldades e desafios existenciais, explicando a Justiça de Deus ante os acontecimentos humanos.

A ignorância dos contemporâneos de Jesus a respeito da vida espiritual era muito grande e ainda hoje existem teimosas resistências, que preferem aceitar o filósofo Jesus ao Embaixador de Deus, com a missão específica de derruir as barreiras que dificultam a compreensão da essencialidade da existência corporal, das lutas que devem ser travadas com otimismo, superando em cada uma delas os patamares por onde cada um transita, buscando mais elevado nível de realização interior.

Para aqueles indivíduos, as compensações eram imediatas, como consequência de uma vida saudável ou não, em forma de privilégios ou de desditas, e remotamente examinando a possibilidade de uma variante eterna, de que tinham pouquíssimo ou praticamente nenhum conhecimento.

Submetidas as revelações proféticas aos impositivos históricos e culturais das necessidades prementes pelas quais lutavam, não havia realmente preocupação com o mundo causai, com a face espiritual profunda do ser em si mesmo. Por isso, contentavam-se com as suas querelas, ambições e correspondentes resultados terrestres.

Em razão desse limite de entendimento, o Homem—Jesus evitou aprofundar as lições libertadoras, oferecendo aquela que é essencial e está sintetizada no amor sob todos os pontos de vista considerado, preparando o advento de uma futura Nova Era, que se apresentaria através da expansão dos fenômenos mediúnicos, com o advento da Psicologia Espírita defluente da Doutrina codificada por Allan Kardec.

Jesus é o rei desse mundo real, que se manifesta através d’Ele em cada momento, que transcende ao convencional e habitual, de cujo entendimento, e somente assim, tem sentido a existência corporal, portanto, acima dos interesses e disputas mesquinhas do que é transitório e onde fermentam as paixões.

Ele aceitaria uma coroa de ironia, porque não necessitava de nenhuma que lhe cingisse a cabeça, pois que a Sua era uma trajetória superior, sem enganos, sem prejuízos, e Sua governança permanecia após a morte do corpo físico, sem vicissitudes, sem malquerenças.

Além das formulações corriqueiras e comezinhas está sempre presente a Sua realeza e todos a bendizem, conformam-se com ela e pretendem alcançá-la, por sua vez, a fim de não experimentarem angústia ou perturbação, ansiedade ou desequilíbrio.

O cetro e a coroa que expressam o Reino de onde Ele veio e para onde deseja conduzir as Suas ovelhas como Pastor gentil que irá apresentá-las ao Supremo Criador, é o amor que encerra as mais completas aspirações existenciais do ser humano.

Nele não há lugar para condutas extravagantes e exigências descabidas; antes proporciona segurança de si mesmo no desempenho dos programas e condutas que a cada um dizem respeito.

Hálito divino, vibração que equilibra o Universo, o amor é a essência fundamental para a vida sob qualquer forma em que se expresse, liame de vinculação de todas as formas vivas com a sua Fonte Geradora.

Graças a essa energia constante que pulsa no Cosmo, se apresenta como identificação harmônica com as demais expressões de vida, em um verdadeiro hino de louvor e de engrandecimento ao Psiquismo Divino que a concebeu e elaborou.

Integrando as moléculas como condição de força de atração para a formação do conjunto, no ser humano é o sentimento mais profundo de afetividade que fomenta a felicidade e desenvolve o progresso, transformando a face áspera do planeta e desgastando as arestas das imperfeições que predominam em a natureza animal, a fim de se revelar em plenitude aquela outra que é de ordem espiritual.

Foi esse Reino de amor que Jesus-Homem veio instalar na Terra. Dessa forma, sem rebuços contestou ao interrogante atormentado, sob o impacto da sombra, envolvido pelo seu lado escuro da personalidade doentia: – Sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade – que na sua definição profunda e penetrante é Deus.

(FRANCO, Divaldo P., médium, ÂNGELIS, Joanna de, Espírito. Jesus e o Evangelho – à Luz da Psicologia Profunda. Salvador, BA: Livr.Espírita Alvorada, 2000, 2ª ed., pp.27-32)

Comentário:

A sombra coletiva fortalece a ilusão de que o sujeito deva se sobrepor sobre os outros por astúcia, perversidade, status, posição de poder, títulos de nobreza etc., referências efêmeras deste mundo, que em geral não se apoiam em edificação moral ou emocional. Trata-se de modos de exaltação do ego, distanciando a pessoa da verdade e prolongando sua imaturidade psicológica.

Jesus se distingue de Pilatos, na medida em que o Nazareno é o sujeito que triunfou sobre si mesmo, venceu as amarras do ego, ingressando na esfera de uma paz que as disputas de poder terrena jamais poderiam perturbar. Pilatos, por seu lado, encarna a sombra coletiva dos poderosos da Terra, figura do poder temporal, dos tesouros materiais, da força política, que se assenta nos permanentes esforços para manter seu poder, em meio ao constante medo de sua perda. O reino terreno vive de laços efêmeros e de reverências fúteis, enquanto o reino divino não se apega às convenções temporárias, situando-se acima de disputas e paixões transitórias.

A verdade, via de enfrentamento da sombra, é o caminho do autoconhecimento, que permite o domínio das paixões doentias e dos valores efêmeros do plano material. A verdade para o Espírito se afirma pelo conhecimento de que há vidas futuras, em que a qualidade das experiências humanas se define pelos méritos acumulados e pelos esforços empreendidos na senda do bem, que tem em Jesus sua referência fundamental.

Em essência, o mal não existe; as manifestações humanas é que usam a energia e a consciência puras para realizar criações com características que não são boas para o indivíduo ou para a coletividade.

Jesus nos ensina o amor, essência da vida, inscrito em cada átomo, em cada expressão de vida, em cada ser.

É o amor, expressão de Deus e dos exemplos de Jesus, que sustenta o mais profundo sentimento de afetividade, o roteiro de evolução e de felicidade do Espírito.

Referências:

 ZWEIG, C. e ABRAMS, J. Ao Encontro da Sombra, São Paulo: Cultrix, 2012.

O reino

 

627px-caravaggio_-_taking_of_christ_-_dublin_-_2(Caravaggio, A captura de Cristo, 1602) (Reprodução)

Ev. Cap. II – Item 2

O meu reino não é deste mundo.

(João, c.XVIII, v.36)

O mundo, examinado sob a óptica teológica à luz da psicologia profunda, é um educandário de desenvolvimento dos recursos espirituais do ser em trânsito para o reino dos Céus.

Do ponto de vista teológico ancestral, é possuidor de um significado secundário e perturbador para o Espírito, que o deve desprezar e mesmo odiá-lo.

Essa visão originada no Cristianismo primitivo, encontrou, na ignorância medieval, o seu apogeu, estimulando os crentes a renunciá-lo, deixando o corpo consumir-se pelas enfermidades degenerativas e pelo abandono a que era relegado como passaporte para a glória celeste.

À medida que a sombra coletiva, no seu caráter universalista, começou a dissipar-se em razão dos avanços do conhecimento, a dicotomia em torno do mundo e do Reino deixou de ser separada por um imenso abismo, graças à ponte da lógica e da razão que foi colocada entre as duas bordas, facilitando a comunicação, o acesso de quem desejasse transferir-se de um para o outro lado.

Fosse o mundo apenas um vale de lágrimas, ou a região de dores infernais, defrontaríamos um absurdo ético, ao analisarmos a Divindade com todos os atributos da Perfeição, atirando criaturas psicologicamente infantis e desequipadas em uma experiência impossível de ser vivenciada com dignidade e elevação. Quaisquer exceções que ocorressem, se apresentariam como portadoras do transtorno masoquista, que haviam elegido a desdita e o infortúnio, a fim de alcançarem a glória como compensação pelas dores sofridas. Seria uma conquista difícil de ser conseguida pelo ser humano, constituindo um paradoxo na área da razão e do bom senso, face ao impositivo de que o sofrimento é o caminho único para facultar o equilíbrio e o júbilo.

Isso constituiria a morte do amor, o aniquilamento da esperança e a destruição da caridade.

Em nenhum momento, o Homem-Jesus anuiu com essa ideia ou fez algum pronunciamento que pudesse dar validade a esse conceito absurdo e cruel, desnaturando a magnanimidade de Deus,

O mundo tem as suas características e legislação, condutas e ética ainda imperfeitas, certamente, mas que se aprimoram à medida que o ser humano se aperfeiçoa e adquire equidade, enobrecimento.

Eleger a Deus antes que ao mundo, ressaltam inúmeras passagens neotestamentárias, sem que isso signifique detestar um a benefício do outro.

Para que houvesse esse procedimento evolutivo e qualitativamente ocorressem transformações incessantes, Jesus veio viver nele, participar das suas conjunturas, abençoar as suas paisagens, ensinando como transformar os fatos constritores, limítrofes, em linhas direcionais para o Bem, ante a inevitabilidade do fenômeno da morte física.

A Sua é uma doutrina toda alicerçada nas expressões imortalistas, na vida futura que a todos aguarda, propiciando a conquista desse desiderato mediante a autotransformação, a elevação de propósitos, a eleição de metas significativas e profundas.

Jesus jamais se escusou de participar do convívio social conforme as regras do mundo, e quando não foi recebido conforme os preceitos legais na casa de Simão, o fariseu, que O convidara para um almoço, censurou essa conduta ignóbil, exaltando a mulher que abandonava a sombra e sublimava a libido pervertida, lavando-Lhe os pés e os enxugando com os seus cabelos…

Igualmente aquiesceu jovialmente em receber Nicodemos, que era doutor da Lei e autoridade do Sinédrio, para uma entrevista, desvendando-lhe a incomparável Lei dos renascimentos corporais como necessários para entrar no reino dos Céus, e assim integrar-se no concerto cósmico.

Visitou com alegria mais de uma vez os samaritanos vitimados pelos preconceitos dos judeus, e, por sua vez, reacionários àqueles, divulgando nos seus sítios a estratégia para a felicidade na vida espiritual, que é verdadeira.

Tomou parte da sua a família de Lázaro, da Betânia, aceitando as gentilezas de Maria e advertindo com bonomia a preocupada Marta.

Em momento nenhum levantou a Sua voz para maldizer o mundo, para condená-lo; antes propunha respeito e consideração pela sua estrutura conforme Ele próprio se comportava, comedido e afável.

Mas que o Seu reino não era deste mundo transitório, relativo, material, é, por definitivo, uma grande verdade. Ele viera para que os homens conhecessem a realidade, estes que, de origem pastoril e nômade, não tinham, ao tempo de Moisés, condição para entendê-la, necessitando, antes, do rigor de leis severas a fim de comportar-se com equilíbrio após sucessivos períodos de escravidão, nos quais amolentaram o caráter, a conduta, a existência sem ideal de crescimento e dignificação.

Na visão da Psicologia Profunda, embora Ele se referisse às Esferas de onde procedia, o Seu Reino também eram as paisagens e regiões do sentimento, onde se pudessem estabelecer as bases da fraternidade, e o amor unisse todos os indivíduos como irmãos, conquista primordial para a travessia, pela ponte metafísica, do mundo terrestre para aquele que é de Deus e nos aguarda a todos.

Humanizado, Ele enfrentava os desafios e compreendia a sombra que pairava sobre o discernimento das pessoas, qual ainda ocorre na atualidade expressivamente.

A ignorância da realidade predomina nos jogos dos interesses servis, deixando sempre os seus áulicos profundamente frustrados por não encontrarem neles tudo quanto creem necessitar para estarem em harmonia.

Essa busca de coisa nenhuma, a que se atribui demasiado valor, sempre conduz à solidão, ao desespero, ao vazio existencial, perturbando as melhores aspirações de beleza e de realização pessoal.

Não foram poucos os indivíduos que desejavam instalar aquele Reino por Ele anunciado no próprio coração. Fascinavam-se com a Sua eloquência, com a lógica da proposta libertadora e logo recuavam, ante um mas, que abria condição para optar pelos interesses das paixões a que estavam acostumados, iludindo-se quanto a improváveis possibilidades de retornarem ao Seu convívio.

Um jovem queria segui-lo e era rico. Sensibilizado, afirmou que deixaria tudo e até mesmo daria os seus bens aos pobres pela alegria de O acompanhar, mas, naquele momento, tinha outros compromissos que pretendia atender, após os quais se resolveria pelo que fazer corretamente. E se foi…

Outro moço sintonizou com o Seu chamado, experimentou a sensação indizível da Sua presença harmônica, mas, seu pai havia morrido e ele estava obrigado a sepultá-lo, escamoteando o motivo real, que era receber a herança, e também se foi…

Dez leprosos haviam recebido o Seu aval para a recuperação orgânica, e seguiram jubilosos, cantando hosanas, mas, só um voltou para agradecer, e não se sabe se ingressou nas fileiras da Boa-nova, porque outros objetivos o esperavam. E também se foi…

A multidão que O exaltou no momento da entrada triunfal em Jerusalém, desapareceu aos primeiros sinais de luta, abandonando o entusiasmo e os planos acalentados, mas, anelavam por coroá-lO seu rei. E se foram…

…E o Seu reino não é deste mundo, onde os homens se transformam em chacais para tripudiarem e disputarem as carnes dilaceradas e em decomposição das presas que foram vencidas.

O mas, em relação a Jesus, é predomínio da sombra que paira nessa demorada infância psicológica dos indivíduos como pessoas e das massas como agrupamentos.

Esse mas foi utilizado contra Ele pelos seus argutos e astutos adversários, que O admiravam, mas O invejavam, assacando então calúnias odientas, informando que Ele era representante de Satanás ante a impossibilidade de realizarem o que Ele fazia.

Suas palavras eram sábias, todos as reconheciam assim, mas, o despeito e a sordidez moral, levava-os a deformá-las com declarações de que não correspondiam à tradição nem ao orgulho da raça, que desprezava os gentios, todos os não judeus. E Ele era judeu… Assim mesmo O crucificaram tomados pela sombra coletiva neles dominante.

Ele conhecia Herodes e Pilatos, Anás e Caifás, títeres do povo e dominadores de um dia no mundo que lhes parecia pertencer por um pouco, mas que perderiam pelo exílio, pela desonra política, pela morte, enquanto Ele o vivenciara com grandeza moral, a fim de alar-se ao reino dos Céus que, sem dúvida, começa aqui neste mundo.

A psicologia profunda, metodológica e analítica, vê Jesus, o Homem, como triunfador, tirando dEle o que a ingenuidade cultural dos primeiros tempos, havia-Lhe atribuído, como sendo Deus, Seu filho Unigênito, para situá-lO no nobre lugar de Conquistador, que enfrentou todos os desafios e os venceu com afabilidade e energia, na Sua realeza moral, porque viera para lançar o hífen de luz entre as sombras do mundo e as Esferas de incomparável claridade.

…E Ele respondeu a Pilatos: – O meu reino não é deste mundo, pondo-o ao alcance de todos aqueles que o desejem alcançar, havendo nascido na Terra, para dar o Seu testemunho.

(FRANCO, Divaldo P., médium, ÂNGELIS, Joanna de, Espírito. Jesus e o Evangelho – à Luz da Psicologia Profunda. Salvador, BA: Livr.Espírita Alvorada, 2000, 2ª ed., pp.21-26)

Comentário:

A sombra personifica tudo que o sujeito não deseja encarar de si mesmo.

A sombra pessoal desenvolve-se naturalmente em todas as crianças. À medida que nos identificamos com as características ideais de personalidade (tais como polidez e generosidade) que são encorajadas pelo nosso ambiente, vamos formando aquilo que W. Brugh Joy chama o “eu das decisões de Ano Novo”. Ao mesmo tempo, vamos enterrando na sombra aquelas qualidades que não são adequadas à nossa auto-imagem, como a rudeza e o egoísmo. O ego e a sombra, portanto, desenvolvem-se aos pares, criando-se mutuamente a partir da mesma experiência de vida (Zweig e Abrams, Introdução: O lado da sombra na vida cotidiana in Zweig e Abrams, Ao Encontro da Sombra, São Paulo: Cultrix, 2012, pp.15-16).

Já a sombra coletiva, esta refere-se à maldade humana — nos encara de praticamente todas as partes: ela salta das manchetes dos jornais; vagueia pelas nossas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas; entoca-se nas chamativas sex-shops das nossas cidades; desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional; corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos; vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários; por canos ocultos, despeja a poluição em nossos rios e oceanos; com invisíveis pesticidas, envenena o nosso alimento (Zweig e Abrams, op. cit., p.19).

O processo civilizatório infere diferentes contrastes e problemáticas, que podem levar a sociedade a inúmeras doenças de origem social.

Reconhecer a própria sombra é um fator de fortalecimento da pessoa, colaborando em sua luta contra a opressão coletiva, pois tanto a sociedade quanto o Estado extraem suas qualidades da condição mental de seus indivíduos.

Vale frisar que a harmonia entre o consciente e o inconsciente para Jung é alcançada através do que ele denominou processo de individuação, uma experiência de vida irracional que se expressa por símbolos. No processo terapêutico, este processo pode envolver diferentes tipos de trabalho, como análise de sonhos, produção e interpretação de mandalas, desenhos, modelagem, atividades corporais etc.

Referências:

 JUNG, C.G. A luta com a sombra.

ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.), Ao Encontro da Sombra, São Paulo: Cultrix, 2012.

Soberanas leis

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(Reprodução)

Ev. Cap. I – Item 3

Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas… (Mateus, cap.V, v.17)

A Lei natural, que vige em todo o Universo, é a de Amor, que se exterioriza de Deus mediante a Sua criação.

O Cosmo equilibra-se em parâmetros de harmonia inalterada, porque procede de uma Causalidade inteligente que tudo estabeleceu em equilíbrio.

Essa ordem espontânea é sempre a mesma em toda parte, expressando-se como modelo para a conquista integral de todas as coisas, particularmente do Eu profundo, que dorme em latência nos seres aguardando os fatores propiciatórios à sua manifestação.

No começo é a sombra dominante, geradora de impulsos automáticos, inconscientes, herança dos períodos primeiros da evolução, quando se instalaram no psiquismo os instintos primários, que remanescem em controle das atividades dos processos de crescimento. Inconsciente da sua realidade imortal, o ser é atraído para a Grande Luz libertadora, experimentando os embates internos que o desalojam da concha vigorosa onde se encarcera, facultando-lhe os primeiros voos do discernimento e da razão com promessas de plenitude.

Com efeito inevitável, a inspiração superior vem trabalhando em nome dessa Lei, para que o Espírito modele as asas para a ascensão, através de disciplinas morais e sociais, mediante as quais aprende a dominar os impulsos e racionalizá-los, para que no futuro consiga introjetar o sentimento profundo do amor e, mergulhado conscientemente na Lei Natural, consiga utilizar-se da intuição ou comunicação direta com o Pensamento Universal espraiado em toda parte, ascendendo aos planos da felicidade que almeja.

Moisés houvera estabelecido por inspiração e observação os códigos essenciais ao processo de libertação da sombra e elaborou o Decálogo conduzido pelo Psiquismo Divino tornando-o indestrutível, paradigma para todas as demais leis, por conter em essência o fundamento do respeito a Deus, à vida, aos seres em geral e a si mesmo em particular.

À época, caracterizada pela predominância da sombra coletiva, tornava-se indispensável que ficassem estabelecidas trajetórias de grande vigor, mediante o processo avançado em relação à Lei de talião, aquela que punia conforme o tipo de delito praticado: olho por olho, dente por dente

O ser humano compreendia que a amputação de um membro que houvera delinquido não correspondia a uma medida de justiça, mas sim de vingança, porque, afinal, não é o órgão que injuria, que comete o delito, mas sim é o ser pensante que transfere a atribuição da responsabilidade, propondo outro tipo de correção.

A reeducação passou a ser a medida própria para reabilitar o infrator, antes que para destruir-lhe a existência corporal ou parte dela.

Desde o primeiro código moral e legal, conhecido e exarado na estela de pedra por Hamurabi, que ficaram os primeiros sinais de respeito pela vida e pelos seres humanos, embora a dominação arbitrária dos poderosos em trânsito para o túmulo, sempre vitimados pela sombra que neles era a característica essencial.

Jesus, o Homem excelente, chegou à Terra e defrontou a ignorância em predomínio trazendo a mensagem de amor que jamais fora apresentada antes na formulação de que Ele se fazia portador.

O amor era considerado sentimento feminino, próprio da fragilidade atribuída à mulher, porque se ignorava a força existente na anima que existe em todos os homens, prepotentemente submetidos ao férreo jugo da brutalidade. Da mesma forma, o animus que compõe psicologicamente o ser feminino era propositalmente ignorado, a fim de não ser vítima de punição, que atribuía à mulher culpa e responsabilidade pelo delíquio inicial do homem, portanto, a degradação de toda a Humanidade.

Esse barbarismo conceptual encontrava a sua extravagante inspiração na Bíblia, interpretada de forma conveniente e dominadora em desserviço das admiráveis imagens que revestem o pensamento original e podem ser decodificadas pela moderna Psicologia Profunda, como também pela psicanálise, retirando os mitos nela existentes e configurando os arquétipos que prosseguem no inconsciente individual e coletivo de todas as criaturas humanas.

Jesus não foi o biótipo de legislador convencional. Ele não veio submeter a Humanidade nem submeter-se às leis vigentes. Era portador de uma revolução que tem por base o amor na sua essencialidade mais excelente e sutil, e que adotado transforma os alicerces morais do indivíduo e da sociedade.

Ao do Seu tempo eram leis injustas e condenatórias, punitivas e impiedosas, que viam o ser humano apenas como um animal passível de domesticação, e quando se lhe patenteava a rebeldia, tornava-se merecedor de extermínio para o bem da sociedade. Mormente que as paixões da sombra, envolvente dos legisladores e seus tribunais, sempre preponderavam nas decisões criminosas, não menos merecedoras de reparação do que aquelas que pretendiam justiçar.

A superioridade espiritual e moral de Jesus entendeu a necessidade, não a primazia desse código perverso, e submeteu-se, pois que Ele viera também para dar exemplo dos postulados que recomendava, considerando respeitáveis os profetas e legisladores que estabeleceram essas leis nos seus respectivos períodos. Todavia, Ele trazia uma nova versão da realidade, centrada no ser imortal, procedente do mundo espiritual e a ele volvendo, o que alterava a estrutura da justiça, que não mais deveria ser punitiva-destrutiva, mas educativa-reabilitadora.

O ser humano erra por ignorância ou rebeldia, sob os estímulos do ego autodefensor, sem conhecimento profundo do significado existencial, do valor de si mesmo.

Mergulhado em sombra, esse lado escuro da personalidade sobressai-se e impulsiona a ações que estão destituídas da razão e da compaixão, desnaturadas nas bases e dominantes na essência.

O ensinamento de Jesus fundamenta-se na evolução do Self, iluminando a sombra e vencendo-a.

Ele vem buscar o ser humano no abismo em que se encontra, priorizando os valores éticos e espirituais e deixando à margem as compensações egóicas, porque aquele que já desfrutou de felicidade e não a soube repartir com o seu próximo, terá menos possibilidade de fruí-la depois da vida física.

Todos os objetivos da Boa-nova que Ele trouxe centram-se no futuro do Espírito, na sua emancipação total, na sua incessante busca de Deus.

Tornando-se o Caminho, a Sua é a Verdade que conduz à Vida, à plenitude, ao armazenamento de sabedoria e de amor.

Na conquista desse objetivo, não importam os preços e testemunhos, os impositivos das legislações, mesmo quando arbitrárias e injustas, porque são transitórias. No entanto, diante da Consciência Cósmica, a escala de valores é feita mediante condutas essenciais, aquelas que são do ser em si mesmo responsável e assume as consequências dos seus hábitos perante a vida.

Todo o Seu verbo está exarado em linguagem programada para resistir aos tempos de evolução do pensamento e abrir espaços para as repercussões sociológicas e espirituais, éticas essenciais e morais seguras através dos diferentes períodos da Humanidade.

Ocultando grandes verdades em símbolos compatíveis com a compreensão do momento, utilizou-se com sabedoria dos conteúdos dos hábitos diários para compor o mais admirável hino de louvor à vida de que se tem conhecimento.

Suas parábolas, argamassadas com o cimento das lições do cotidiano, são discursos para todos os períodos do desenvolvimento sócio-psicológico das criaturas. Não obstante, fez grandes silêncios em torno de verdades mais transcendentes que poderiam ser desnaturadas por falta de amadurecimento evolutivo e psicológico dos Seus coevos, impossibilitados mesmo de registrar o pensamento, que sofreria, inevitavelmente, mutilações, adaptações, adulterações de acordo com os interesses vigentes em cada estágio da evolução.

Tornava-se, por outro lado, necessário que a ciência pudesse corroborar-Lhe os postulados, oferecendo à razão os meios de aceitação compatíveis com as exigências do sentimento destravado das leis vigorosas e primitivas, bem como dos dogmas que as substituiriam, tão perversos quanto as mesmas, a fim de manterem as mentes submetidas aos interesses das religiões e dos Estados ultramontanos.

Pelo mecanismo inevitável e incoercível das reencarnações, missionários do Bem e da Luz periodicamente mergulhando no corpo esbatiam a sombra coletiva, libertando o ser daquela que nele predominasse, mediante o esforço de adaptação às conquistas da inteligência e da emoção.

Na perspectiva, portanto, da psicologia profunda, a Lei de amor está inserta no ser legítimo, trabalhando-o sem cessar face ao fatalismo da evolução nele predominante, ao tempo em que os conceitos de imortalidade, de comunicabilidade do Espírito após a morte e da reencarnação pudessem receber o aval da Ciência investigadora, abrindo novos horizontes para o amadurecimento psicológico, gerador da felicidade humana.

Por isso, o enunciado de Jesus: Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas, é de significado relevante e essencial, ensinando que, mesmo diante de leis injustas e imposições apaixonadas, o ser lúcido não deve criar embaraços ou temer as injunções negativas, porquanto, na sua liberdade interior, nada de fora consegue alcançá-lo realmente, exceto a sabedoria da Lei Natural inserta na sua consciência.

(FRANCO, Divaldo P., médium, ÂNGELIS, Joanna de, Espírito. Jesus e o Evangelho – à Luz da Psicologia Profunda. Salvador, BA: Livr.Espírita Alvorada, 2000, 2ª ed., pp.15-20)

Comentário:

A Lei de Amor está inscrita em toda a obra de Deus, desde o átomo, passando pelo vasto e infindo Universo, até o íntimo de cada criatura, de cada forma de vida, de cada pessoa.

Ao esclarecer que “Não penseis que eu venha destruir a lei ou os profetas”, Jesus reafirma a essência da Lei de Amor, presente desde os primórdios dos ensinamentos judaico-cristãos.

Carl G. Jung usou os arquétipos – termos presentes na filosofia clássica – para descrever as estruturas universais provenientes do inconsciente coletivo, mas também presentes na constituição psíquica de cada indivíduo.

Para Jung, a psique é um sistema fechado, que tende a se auto-regular.

Persona – arquétipo da conformidade. Trata-se da máscara social ou da fachada ostentada publicamente com a intenção de provocar uma impressão favorável a fim de que a sociedade o aceite.

Sombra – arquétipo que contém uma grande quantidade da natureza animal, resistente, que possui ímpetos que precisam ser domados, não sendo possível eliminá-los.

Anima e Animus – Enquanto a Persona é “face externa” da psique, o ser humano tem sua “face interna”, que Jung denominou de anima nos homens e de animus nas mulheres. O arquétipo de anima constitui o lado feminino da psique masculina; o arquétipo de animus compõe o lado masculino da psique feminina. Toda pessoa possui qualidades do sexo oposto, não somente no sentido biológico de que tanto o homem quanto a mulher secretam hormônios masculinos e femininos, mas também no sentido psicológico das atitudes e sentimentos.

Referências

CAVALCANTI, Tito R.A. Jung. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2007.

HALL, C.S. e NORDBY, V.J. Introdução à Psicologia Junguinana. São Paulo: Cultrix, 8ª ed., 2005.