O reino

 

627px-caravaggio_-_taking_of_christ_-_dublin_-_2(Caravaggio, A captura de Cristo, 1602) (Reprodução)

Ev. Cap. II – Item 2

O meu reino não é deste mundo.

(João, c.XVIII, v.36)

O mundo, examinado sob a óptica teológica à luz da psicologia profunda, é um educandário de desenvolvimento dos recursos espirituais do ser em trânsito para o reino dos Céus.

Do ponto de vista teológico ancestral, é possuidor de um significado secundário e perturbador para o Espírito, que o deve desprezar e mesmo odiá-lo.

Essa visão originada no Cristianismo primitivo, encontrou, na ignorância medieval, o seu apogeu, estimulando os crentes a renunciá-lo, deixando o corpo consumir-se pelas enfermidades degenerativas e pelo abandono a que era relegado como passaporte para a glória celeste.

À medida que a sombra coletiva, no seu caráter universalista, começou a dissipar-se em razão dos avanços do conhecimento, a dicotomia em torno do mundo e do Reino deixou de ser separada por um imenso abismo, graças à ponte da lógica e da razão que foi colocada entre as duas bordas, facilitando a comunicação, o acesso de quem desejasse transferir-se de um para o outro lado.

Fosse o mundo apenas um vale de lágrimas, ou a região de dores infernais, defrontaríamos um absurdo ético, ao analisarmos a Divindade com todos os atributos da Perfeição, atirando criaturas psicologicamente infantis e desequipadas em uma experiência impossível de ser vivenciada com dignidade e elevação. Quaisquer exceções que ocorressem, se apresentariam como portadoras do transtorno masoquista, que haviam elegido a desdita e o infortúnio, a fim de alcançarem a glória como compensação pelas dores sofridas. Seria uma conquista difícil de ser conseguida pelo ser humano, constituindo um paradoxo na área da razão e do bom senso, face ao impositivo de que o sofrimento é o caminho único para facultar o equilíbrio e o júbilo.

Isso constituiria a morte do amor, o aniquilamento da esperança e a destruição da caridade.

Em nenhum momento, o Homem-Jesus anuiu com essa ideia ou fez algum pronunciamento que pudesse dar validade a esse conceito absurdo e cruel, desnaturando a magnanimidade de Deus,

O mundo tem as suas características e legislação, condutas e ética ainda imperfeitas, certamente, mas que se aprimoram à medida que o ser humano se aperfeiçoa e adquire equidade, enobrecimento.

Eleger a Deus antes que ao mundo, ressaltam inúmeras passagens neotestamentárias, sem que isso signifique detestar um a benefício do outro.

Para que houvesse esse procedimento evolutivo e qualitativamente ocorressem transformações incessantes, Jesus veio viver nele, participar das suas conjunturas, abençoar as suas paisagens, ensinando como transformar os fatos constritores, limítrofes, em linhas direcionais para o Bem, ante a inevitabilidade do fenômeno da morte física.

A Sua é uma doutrina toda alicerçada nas expressões imortalistas, na vida futura que a todos aguarda, propiciando a conquista desse desiderato mediante a autotransformação, a elevação de propósitos, a eleição de metas significativas e profundas.

Jesus jamais se escusou de participar do convívio social conforme as regras do mundo, e quando não foi recebido conforme os preceitos legais na casa de Simão, o fariseu, que O convidara para um almoço, censurou essa conduta ignóbil, exaltando a mulher que abandonava a sombra e sublimava a libido pervertida, lavando-Lhe os pés e os enxugando com os seus cabelos…

Igualmente aquiesceu jovialmente em receber Nicodemos, que era doutor da Lei e autoridade do Sinédrio, para uma entrevista, desvendando-lhe a incomparável Lei dos renascimentos corporais como necessários para entrar no reino dos Céus, e assim integrar-se no concerto cósmico.

Visitou com alegria mais de uma vez os samaritanos vitimados pelos preconceitos dos judeus, e, por sua vez, reacionários àqueles, divulgando nos seus sítios a estratégia para a felicidade na vida espiritual, que é verdadeira.

Tomou parte da sua a família de Lázaro, da Betânia, aceitando as gentilezas de Maria e advertindo com bonomia a preocupada Marta.

Em momento nenhum levantou a Sua voz para maldizer o mundo, para condená-lo; antes propunha respeito e consideração pela sua estrutura conforme Ele próprio se comportava, comedido e afável.

Mas que o Seu reino não era deste mundo transitório, relativo, material, é, por definitivo, uma grande verdade. Ele viera para que os homens conhecessem a realidade, estes que, de origem pastoril e nômade, não tinham, ao tempo de Moisés, condição para entendê-la, necessitando, antes, do rigor de leis severas a fim de comportar-se com equilíbrio após sucessivos períodos de escravidão, nos quais amolentaram o caráter, a conduta, a existência sem ideal de crescimento e dignificação.

Na visão da Psicologia Profunda, embora Ele se referisse às Esferas de onde procedia, o Seu Reino também eram as paisagens e regiões do sentimento, onde se pudessem estabelecer as bases da fraternidade, e o amor unisse todos os indivíduos como irmãos, conquista primordial para a travessia, pela ponte metafísica, do mundo terrestre para aquele que é de Deus e nos aguarda a todos.

Humanizado, Ele enfrentava os desafios e compreendia a sombra que pairava sobre o discernimento das pessoas, qual ainda ocorre na atualidade expressivamente.

A ignorância da realidade predomina nos jogos dos interesses servis, deixando sempre os seus áulicos profundamente frustrados por não encontrarem neles tudo quanto creem necessitar para estarem em harmonia.

Essa busca de coisa nenhuma, a que se atribui demasiado valor, sempre conduz à solidão, ao desespero, ao vazio existencial, perturbando as melhores aspirações de beleza e de realização pessoal.

Não foram poucos os indivíduos que desejavam instalar aquele Reino por Ele anunciado no próprio coração. Fascinavam-se com a Sua eloquência, com a lógica da proposta libertadora e logo recuavam, ante um mas, que abria condição para optar pelos interesses das paixões a que estavam acostumados, iludindo-se quanto a improváveis possibilidades de retornarem ao Seu convívio.

Um jovem queria segui-lo e era rico. Sensibilizado, afirmou que deixaria tudo e até mesmo daria os seus bens aos pobres pela alegria de O acompanhar, mas, naquele momento, tinha outros compromissos que pretendia atender, após os quais se resolveria pelo que fazer corretamente. E se foi…

Outro moço sintonizou com o Seu chamado, experimentou a sensação indizível da Sua presença harmônica, mas, seu pai havia morrido e ele estava obrigado a sepultá-lo, escamoteando o motivo real, que era receber a herança, e também se foi…

Dez leprosos haviam recebido o Seu aval para a recuperação orgânica, e seguiram jubilosos, cantando hosanas, mas, só um voltou para agradecer, e não se sabe se ingressou nas fileiras da Boa-nova, porque outros objetivos o esperavam. E também se foi…

A multidão que O exaltou no momento da entrada triunfal em Jerusalém, desapareceu aos primeiros sinais de luta, abandonando o entusiasmo e os planos acalentados, mas, anelavam por coroá-lO seu rei. E se foram…

…E o Seu reino não é deste mundo, onde os homens se transformam em chacais para tripudiarem e disputarem as carnes dilaceradas e em decomposição das presas que foram vencidas.

O mas, em relação a Jesus, é predomínio da sombra que paira nessa demorada infância psicológica dos indivíduos como pessoas e das massas como agrupamentos.

Esse mas foi utilizado contra Ele pelos seus argutos e astutos adversários, que O admiravam, mas O invejavam, assacando então calúnias odientas, informando que Ele era representante de Satanás ante a impossibilidade de realizarem o que Ele fazia.

Suas palavras eram sábias, todos as reconheciam assim, mas, o despeito e a sordidez moral, levava-os a deformá-las com declarações de que não correspondiam à tradição nem ao orgulho da raça, que desprezava os gentios, todos os não judeus. E Ele era judeu… Assim mesmo O crucificaram tomados pela sombra coletiva neles dominante.

Ele conhecia Herodes e Pilatos, Anás e Caifás, títeres do povo e dominadores de um dia no mundo que lhes parecia pertencer por um pouco, mas que perderiam pelo exílio, pela desonra política, pela morte, enquanto Ele o vivenciara com grandeza moral, a fim de alar-se ao reino dos Céus que, sem dúvida, começa aqui neste mundo.

A psicologia profunda, metodológica e analítica, vê Jesus, o Homem, como triunfador, tirando dEle o que a ingenuidade cultural dos primeiros tempos, havia-Lhe atribuído, como sendo Deus, Seu filho Unigênito, para situá-lO no nobre lugar de Conquistador, que enfrentou todos os desafios e os venceu com afabilidade e energia, na Sua realeza moral, porque viera para lançar o hífen de luz entre as sombras do mundo e as Esferas de incomparável claridade.

…E Ele respondeu a Pilatos: – O meu reino não é deste mundo, pondo-o ao alcance de todos aqueles que o desejem alcançar, havendo nascido na Terra, para dar o Seu testemunho.

(FRANCO, Divaldo P., médium, ÂNGELIS, Joanna de, Espírito. Jesus e o Evangelho – à Luz da Psicologia Profunda. Salvador, BA: Livr.Espírita Alvorada, 2000, 2ª ed., pp.21-26)

Comentário:

A sombra personifica tudo que o sujeito não deseja encarar de si mesmo.

A sombra pessoal desenvolve-se naturalmente em todas as crianças. À medida que nos identificamos com as características ideais de personalidade (tais como polidez e generosidade) que são encorajadas pelo nosso ambiente, vamos formando aquilo que W. Brugh Joy chama o “eu das decisões de Ano Novo”. Ao mesmo tempo, vamos enterrando na sombra aquelas qualidades que não são adequadas à nossa auto-imagem, como a rudeza e o egoísmo. O ego e a sombra, portanto, desenvolvem-se aos pares, criando-se mutuamente a partir da mesma experiência de vida (Zweig e Abrams, Introdução: O lado da sombra na vida cotidiana in Zweig e Abrams, Ao Encontro da Sombra, São Paulo: Cultrix, 2012, pp.15-16).

Já a sombra coletiva, esta refere-se à maldade humana — nos encara de praticamente todas as partes: ela salta das manchetes dos jornais; vagueia pelas nossas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas; entoca-se nas chamativas sex-shops das nossas cidades; desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional; corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos; vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários; por canos ocultos, despeja a poluição em nossos rios e oceanos; com invisíveis pesticidas, envenena o nosso alimento (Zweig e Abrams, op. cit., p.19).

O processo civilizatório infere diferentes contrastes e problemáticas, que podem levar a sociedade a inúmeras doenças de origem social.

Reconhecer a própria sombra é um fator de fortalecimento da pessoa, colaborando em sua luta contra a opressão coletiva, pois tanto a sociedade quanto o Estado extraem suas qualidades da condição mental de seus indivíduos.

Vale frisar que a harmonia entre o consciente e o inconsciente para Jung é alcançada através do que ele denominou processo de individuação, uma experiência de vida irracional que se expressa por símbolos. No processo terapêutico, este processo pode envolver diferentes tipos de trabalho, como análise de sonhos, produção e interpretação de mandalas, desenhos, modelagem, atividades corporais etc.

Referências:

 JUNG, C.G. A luta com a sombra.

ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.), Ao Encontro da Sombra, São Paulo: Cultrix, 2012.