Realeza

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(Caravaggio. Ecce Homo, 1605) (reprodução)

Ev. Cap. II – Item 4

(…) Tu o dizes: sou rei; não nasci e não vim a este mundo, senão para dar testemunho da verdade.

João, cap. XVIII, v.37.

A sombra coletiva sempre impõe aos homens e mulheres que lhe padecem as injunções, mediante aquela que lhes é própria, a disputa pela conquista dos lugares transitórios de proeminência e domínio no concerto social e na cultura de cada época, elevando os pigmeus atormentados que se notabilizam pelas excentricidades ou astúcias, perversidades ou heranças ancestrais para, deslumbrados e iludidos, exibirem o triunfo externo sobre as demais criaturas, embora, muitas vezes, sob os camartelos da frustração, do vazio existencial, das tormentosas ambições desmedidas.

Ser rei significava, no passado, a conquista de uma condição que se atribuía como divina, conforme os parâmetros da loucura, apresentando-se superior aos outros, que lhe deviam prestar subserviência, como se a sua fragilidade orgânica estivesse indene à presença do sofrimento, da solidão, da amargura, da velhice, da doença e da morte.

A exaltação do ego exacerbava-lhe os interesses e anestesiava-lhe o discernimento que, bloqueado, deixava a personalidade conduzir-se como se tudo à sua volta lhe devesse obediência e bajulação, crendo-se indestrutível…

Imaturos psicologicamente, tais indivíduos acreditavam nessa fantasia, disfarçando-se com indumentárias exóticas e nababas que, apesar disso, não lhes ocultavam as torpezas morais e torturas emocionais.

Frágeis, porém, sucumbiam ou eram despidos do poder mediante a mudança dos ventos políticos ou das paixões dos adversários que sempre vivem em disputas ferrenhas e doentias.

Ainda hoje é assim em todas as expressões comportamentais das variadas posições apresentadas pela política humana, seja na religião, na sociedade, na ciência, na educação, onde quer que se movimentem as criaturas sonhadoras vitimadas pelo jugo da sombra.

Pilatos representava, naquela circunstância, o poder temporal que o amarguraria depois, levando-o a sucumbir quando destituído mais tarde por outrem mais poderoso, ao sopro das anteriores brisas bonançosas que se transformaram em tempestades destruidoras.

A sua preocupação com Jesus estava assentada no medo de perder a governança, de ser vítima das contravenções que sustentava para manter o poder entre intrigantes e pérfidos que o vassalavam em expressivo número.

Diante daquele Homem compassivo e submisso, as suas projeções e receios desapareceram.

Ali não se encontrava um competidor vulgar, mas um triunfador sobre si mesmo, que não disputava nada porque já possuía o mais importante tesouro de paz.

Na sua fragilidade o condenado se apresentava forte e imbatível, amarrado e livre, lanhado e indiferente ao suplício, coroado de espinhos e nobre, ao mesmo tempo muito distante das questiúnculas miseráveis da sombra, cuja pergunta não poderia deixar de ser-Lhe feita: – És, pois, rei?

Desejava sabê-lo dEle próprio, porque os Seus inimigos O apresentaram como rei dos judeus, portanto, perigoso. A Sua resposta, porém, não deixava dúvida, ao afirmar que o Seu reino não é deste mundo.

Aturdido com aquela sinceridade e com o Seu desinteresse pelas mentiras terrestres, não poderia sopitar a curiosidade de saber mais, de dar largas à sombra, tranquilizando-se em seu trono de infantilidade e de jogos que o distraíam com prazeres doentios.

Jesus, profundamente livre, elucidou, por fim: – Não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz.

A verdade espanca a sombra, ilumina a ignorância, liberta dos atavismos do inconsciente, é-lhe a chave única, preparando para a vida permanente, aquela que não se extingue com a presença da morte.

Jesus é o exemplo do ser integrado, perfeitamente destituído de um inconsciente perturbador. Todas as suas matrizes arquetípicas vêm da herança divina nEle existente e predominante.

A vida futura, portanto, é o delineamento essencial do Seu ministério, em razão da consciência da Sua realidade, por onde transita desde então, aprisionado ao corpo, mas inteiramente possuidor da faculdade de sintonia e contato com essa Causalidade.

A Sua trajetória é desenhada na certeza da vida espiritual, aquela que aguarda a todos, a que se insere no contexto das realizações, por ser fundamental na constituição dos ideais e das perspectivas da vida.

O Seu apostolado fixa-se no objetivo ôntico espiritual, no despojar dos condicionamentos e impregnações do trânsito corporal, que representa aprendizagem para alcançar a destinação que aguarda as criaturas terrestres.

Não houvesse a vida futura, nenhum significado existiria em Sua vida -, em todas as vidas – no esforço hercúleo para erguer o ser humano do seu primarismo e recomendar-lhe a incessante luta pela transformação moral, pela aquisição de mais apuradas percepções psíquicas, que se constituem elementos básicos para a constatação desse desiderato.

Essa meta, que deve ser alcançada, justifica todas as dificuldades e desafios existenciais, explicando a Justiça de Deus ante os acontecimentos humanos.

A ignorância dos contemporâneos de Jesus a respeito da vida espiritual era muito grande e ainda hoje existem teimosas resistências, que preferem aceitar o filósofo Jesus ao Embaixador de Deus, com a missão específica de derruir as barreiras que dificultam a compreensão da essencialidade da existência corporal, das lutas que devem ser travadas com otimismo, superando em cada uma delas os patamares por onde cada um transita, buscando mais elevado nível de realização interior.

Para aqueles indivíduos, as compensações eram imediatas, como consequência de uma vida saudável ou não, em forma de privilégios ou de desditas, e remotamente examinando a possibilidade de uma variante eterna, de que tinham pouquíssimo ou praticamente nenhum conhecimento.

Submetidas as revelações proféticas aos impositivos históricos e culturais das necessidades prementes pelas quais lutavam, não havia realmente preocupação com o mundo causai, com a face espiritual profunda do ser em si mesmo. Por isso, contentavam-se com as suas querelas, ambições e correspondentes resultados terrestres.

Em razão desse limite de entendimento, o Homem—Jesus evitou aprofundar as lições libertadoras, oferecendo aquela que é essencial e está sintetizada no amor sob todos os pontos de vista considerado, preparando o advento de uma futura Nova Era, que se apresentaria através da expansão dos fenômenos mediúnicos, com o advento da Psicologia Espírita defluente da Doutrina codificada por Allan Kardec.

Jesus é o rei desse mundo real, que se manifesta através d’Ele em cada momento, que transcende ao convencional e habitual, de cujo entendimento, e somente assim, tem sentido a existência corporal, portanto, acima dos interesses e disputas mesquinhas do que é transitório e onde fermentam as paixões.

Ele aceitaria uma coroa de ironia, porque não necessitava de nenhuma que lhe cingisse a cabeça, pois que a Sua era uma trajetória superior, sem enganos, sem prejuízos, e Sua governança permanecia após a morte do corpo físico, sem vicissitudes, sem malquerenças.

Além das formulações corriqueiras e comezinhas está sempre presente a Sua realeza e todos a bendizem, conformam-se com ela e pretendem alcançá-la, por sua vez, a fim de não experimentarem angústia ou perturbação, ansiedade ou desequilíbrio.

O cetro e a coroa que expressam o Reino de onde Ele veio e para onde deseja conduzir as Suas ovelhas como Pastor gentil que irá apresentá-las ao Supremo Criador, é o amor que encerra as mais completas aspirações existenciais do ser humano.

Nele não há lugar para condutas extravagantes e exigências descabidas; antes proporciona segurança de si mesmo no desempenho dos programas e condutas que a cada um dizem respeito.

Hálito divino, vibração que equilibra o Universo, o amor é a essência fundamental para a vida sob qualquer forma em que se expresse, liame de vinculação de todas as formas vivas com a sua Fonte Geradora.

Graças a essa energia constante que pulsa no Cosmo, se apresenta como identificação harmônica com as demais expressões de vida, em um verdadeiro hino de louvor e de engrandecimento ao Psiquismo Divino que a concebeu e elaborou.

Integrando as moléculas como condição de força de atração para a formação do conjunto, no ser humano é o sentimento mais profundo de afetividade que fomenta a felicidade e desenvolve o progresso, transformando a face áspera do planeta e desgastando as arestas das imperfeições que predominam em a natureza animal, a fim de se revelar em plenitude aquela outra que é de ordem espiritual.

Foi esse Reino de amor que Jesus-Homem veio instalar na Terra. Dessa forma, sem rebuços contestou ao interrogante atormentado, sob o impacto da sombra, envolvido pelo seu lado escuro da personalidade doentia: – Sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade – que na sua definição profunda e penetrante é Deus.

(FRANCO, Divaldo P., médium, ÂNGELIS, Joanna de, Espírito. Jesus e o Evangelho – à Luz da Psicologia Profunda. Salvador, BA: Livr.Espírita Alvorada, 2000, 2ª ed., pp.27-32)

Comentário:

A sombra coletiva fortalece a ilusão de que o sujeito deva se sobrepor sobre os outros por astúcia, perversidade, status, posição de poder, títulos de nobreza etc., referências efêmeras deste mundo, que em geral não se apoiam em edificação moral ou emocional. Trata-se de modos de exaltação do ego, distanciando a pessoa da verdade e prolongando sua imaturidade psicológica.

Jesus se distingue de Pilatos, na medida em que o Nazareno é o sujeito que triunfou sobre si mesmo, venceu as amarras do ego, ingressando na esfera de uma paz que as disputas de poder terrena jamais poderiam perturbar. Pilatos, por seu lado, encarna a sombra coletiva dos poderosos da Terra, figura do poder temporal, dos tesouros materiais, da força política, que se assenta nos permanentes esforços para manter seu poder, em meio ao constante medo de sua perda. O reino terreno vive de laços efêmeros e de reverências fúteis, enquanto o reino divino não se apega às convenções temporárias, situando-se acima de disputas e paixões transitórias.

A verdade, via de enfrentamento da sombra, é o caminho do autoconhecimento, que permite o domínio das paixões doentias e dos valores efêmeros do plano material. A verdade para o Espírito se afirma pelo conhecimento de que há vidas futuras, em que a qualidade das experiências humanas se define pelos méritos acumulados e pelos esforços empreendidos na senda do bem, que tem em Jesus sua referência fundamental.

Em essência, o mal não existe; as manifestações humanas é que usam a energia e a consciência puras para realizar criações com características que não são boas para o indivíduo ou para a coletividade.

Jesus nos ensina o amor, essência da vida, inscrito em cada átomo, em cada expressão de vida, em cada ser.

É o amor, expressão de Deus e dos exemplos de Jesus, que sustenta o mais profundo sentimento de afetividade, o roteiro de evolução e de felicidade do Espírito.

Referências:

 ZWEIG, C. e ABRAMS, J. Ao Encontro da Sombra, São Paulo: Cultrix, 2012.