Congelamento de corpos

NO CONGELAMENTO DOS CORPOS, A ILUSÃO

Sempre que volto à Colônia onde moro procuro olhar ao meu redor para sentir a beleza da natureza e, feliz, busco a companhia das flores e dos pássaros. Olhando tudo sinto o quanto Deus é bom.

A maioria dos encarnados, por julgar que a morte é o fim da estrada, não se preocupa em agir corretamente e se auto-destrói. E a vida é contínua, um rio de oportunidades cujas águas um dia chegarão a Deus. Até lá, temos por obrigação nos tornarmos puros. Muitos, vivendo somente o hoje por julgarem que no amanhã só existe o nada, não preparam uma bagagem digna. Quando chega a “morte”, o espírito, completamente perturbado, se sente muito infeliz, não se conforma com a realidade do mundo espiritual e só pensa em viver junto aos encarnados, não percebendo o mal que faz a si próprio. Nisso Joana aproximou-se de mim:

— Sérgio, por que a preocupação?

– Encontrava-me somente pensando como pode um homem não aceitar a imortalidade da alma. Quem assim pensa não crê em Deus, apenas recita o Seu nome em vão.

Se Deus destruísse as Suas obras Ele não seria perfeito, portanto, não possuiria bondade. E quantos que se dizem crentes nas Suas palavras esperam a hora do descanso eterno.

— Mas é difícil, Sérgio, para muitos, buscar as verdades do mundo espiritual, principalmente os que no corpo físico só pensaram em se divertir. Não é fácil para o orgulhoso imaginar que depois da morte terá de viver ao lado dos pobres que desprezou e muitas vezes labutar por uma ocupação, quase sempre bem longe daquela que gostaria de exercer. Esta semana fomos socorrer um irmão que quando encarnado foi reverenciado pelo equilíbrio e pela inteligência. O seu espírito, ao constatar que se desprendia da matéria, procurava ao seu redor a razão de se manter ainda vivo.

Apesar de ter lido alguns livros sobre a morte, ele a tudo examinava e, ao perceber que do lado espiritual os equipamentos médicos eram quase iguais aos do mundo físico, curioso ficou em conhecer o outro lado da vida. Quando seus familiares vieram dar-lhe as boas-vindas, ele, chorando muito, disse ao pai:

— Por que não se aprende sobre a morte nas salas de aula? Evitaria que o homem errasse tanto. Foram poucos os anos vividos na terra e não sei se os vivi dignamente.

— Meu filho, agora somente sua consciência responderá. Espero que ela não se torne juiz por demais severo.

Aquele espírito, mesmo sendo levado na maca, tinha no olhar a indagação e nos gestos as atitudes de um homem público. Depois de socorrido, pouco tínhamos para fazer ali. Os familiares já esperavam o desencarne, portanto, podíamos retirar-nos, e quando o fazíamos vimos aproximar-se do recém-desencarnado o espírito de uma mulher que ainda tinha a aparência de preta velha.

O nosso amigo, ao reconhecê-la, chorou muito, abraçado a ela, que carinhosamente o amparou nos braços. Era o reencontro num mundo onde todos somos socialmente iguais, só havendo a separação por vibração magnética.

Não é Deus quem nos manda para o “inferno” ou o “purgatório”, mas a nossa consciência, que nos coloca no lugar apropriado às nossas lembranças. Um homem sem caráter não pode ficar ao lado de um que viveu na justiça. Um caridoso não pode viver com alguém que só amou a usura. O famoso irmão foi socorrido, mas não podemos assegurar onde será a sua morada, pois não sabemos o que ele tem depositado no banco da providência divina. Se ele deve muito, terá de trabalhar primeiro em tarefas bem simples para aprender a conviver com a humildade. Mas também pode o irmão ter uma boa cota de belas ações, que o colocará ao lado dos trabalhadores deste País tão amado, junto aos espíritos encarregados de fazer brilhar a estrela de Jesus na pátria brasileira.

Joana foi-se retirando e eu, que não tinha assistido a este socorro, senti-me gratificado pela visita da minha querida irmã. Assim, nós dois, conversando e apreciando a natureza, que é velada por Deus, fomos ao encontro de Deleuze, Edouard e Patrice.

“Muitos dos lírios colhidos na terra trazem ainda nos pés o lodo da imperfeição”. Pensando isso, dirigimo-nos a um hospital da espiritualidade, onde vários recém-desencarnados estavam sendo tratados.

O hospital, em formato redondo, era circundado por palmeiras. Muitos olhos d’água enfeitavam o jardim, onde a cor azul predominava, apesar do prédio ser pintado de branco.

Até as hortências, cravos e rosas me pareciam azulados.

Na portaria, fomos recebidos por Sillos, que conversou muito com Deleuze. A sala de espera apresentava em suas paredes vários quadros de pessoas que nunca vi, verdadeiras obras de arte. Dada a permissão, entramos em um pátio redondo onde uma fonte de águas claras e coloridas borrifava os doentes que ali se encontravam na grama ou nos bancos. Já me impacientava, por não saber o motivo pelo qual ali nos encontrávamos, quando avistamos a doutora Matilde. Muito gentil, convidou-nos para uma visita às enfermarias do Hospital de Lucas.

Eram poucas as camas na enfermaria número um, e nelas dormiam espíritos que davam a aparência de mumificados. Aproximamo-nos. Através da doutora Matilde e outro médico ali encontrado – o doutor Sabá – ficamos sabendo que aqueles irmãos tinham os corpos congelados na terra.

Julgavam-se mortos, apesar do tratamento que vinham recebendo. A cama me pareceu aquecida por várias lâmpadas: ora acendia a azul, ora outro tom de azul, depois a cor-de-rosa, em seguida voltava a azul. Logo após uma lâmpada amarela acendeu no centro cardíaco. Finalmente, voltou a azul. Os espíritos em sono profundo, pareciam “mortos”, porque ignoravam qualquer presença. Passamos pelas camas e observamos todos a dormir um bom sono, Joana comentou:

— Até que deve ser bom a gente desencarnar assim, não é mesmo?

— Eu é que não queria esse desencarne, perda de tempo, e depois, acredito que esses espíritos devem estar sentindo um frio louco. E se fosse na terra e faltasse luz? brinquei.

Edouard, que estava perto de nós dois, sorriu, dizendo:

— Talvez assim voltassem à realidade.

— Eles desencarnaram na Sibéria?

~ Não, congelaram seus corpos para a volta do espírito.

— É mesmo? Coitados, esperam com isso driblar a morte?

— Mais ou menos.

— E os que tomavam sol no jardim?

— São os convalescentes, logo estarão trabalhando.

— Mas dizem que existem muitos que nem desencarnaram ainda. E como se encontram aqui?

— Não sabemos disso. Os que socorremos já desencarnaram. Mas tinham tanta certeza de que não iriam desencarnar que até hoje se julgam congelados.

— Gente tem cada mania…

— Existem propagandas para o congelamento.

— É, o freezer está fazendo sucesso. Não só perus, porcos e galinhas, mas os corpos humanos também estão sendo nele guardados. Sabe, Deleuze, eu senti imensa vontade de tocar naqueles corpos, mas ao me aproximar de um deles senti tanto frio!

Deleuze sorriu, dizendo-me:

— Por isso eles estão no Hospital de Lucas, se não fossem socorridos sofreriam muito mais.

— Gostaria de voltar ao jardim.

— Vamos, lá recuperaremos as energias que dispersamos aqui, junto a esses irmãos.

Ao retornarmos ao jardim, procurei reconhecer alguns dos convalescentes, mas a brisa, o perfume, o sol, o orvalho, tudo era tão digno que a curiosidade se dissipou e eu apenas baixei a cabeça, orando a Deus:

Senhor, eu não sou digno de entrar em Sua casa, mas faça com que meu espírito seja salvo junto àqueles que se distanciaram do Seu coração. Assim seja.

(Irene Pacheco Machado, médium, Luiz Sérgio, Espírito. “Lírios Colhidos”, Brasília: Ed. Recanto, 2006, 10ª ed., cap. XVI, pp. 99-103)